spoiler visualizarLu Fauber 21/11/2021
Era pra ser engraçado?
Eu de coração não queria ter encontrado esse livro na loja do kindle. Não queria ter passado por essa experiência e ter insistido em ler até o final pra realmente ter certeza de que era isso mesmo.
A minha experiência foi horrível. Péssima.
Eu tô muito indignada com a história, e já deixo claro que a crítica é ao livro e ao que foi apresentado pros leitores. E me preocupa o fato de ser um livro publicado por editora e tanta coisa irresponsável ter passado.
Aviso de gatilho: estupro e suicídio. E a resenha vai ser longa.
Eu queria que alguém tivesse feito uma avaliação negativa antes pra eu ler ciente, porque até então só tem elogios e a média do livro tá lá em cima.
A proposta se mostrou muito interessante, trabalhar uma distopia onde o presidente merda desse um golpe e surgissem personagens de uma "Resistência" para derrubá-lo (eu nem sei se posso usar a palavra resistência, porque essa organização foi retratada de um jeito muito tosco e surgiu no final pra ter alguma presença no livro).
Achei massa, além da capa, a questão do livro se passar no norte, e as resenhas falavam bastante sobre "representatividade". Comecei a leitura já estranhando o tom do livro, porque a narrativa parece ser de uma menina de 16 anos, ou um diário em primeira pessoa, sendo que a protagonista tem 25.
Tentaram retratar Ayla como uma militante em prol dos direitos dos animais, contra "os milionários", como o tempo todo é ressaltado exaustivamente, e ela vive tranquila em um município do Acre. Até que aleatoriamente um moleque tá segurando uma katana na frente da escola fundamental. A justificava é que por ele sofrer bullying (não vou nem entrar no mérito sobre ter retratado isso aqui desse jeito, que já que a criança sofre bullying ela necessariamente vai querer matar pessoas ou por assistir anime, ou por qualquer coisa, e em vez de vítima virar a vilã da história), queria matar colegas e professores, e a nossa protagonista domina o menino. Nessa, ela acaba ganhando a katana de presente. Detalhe, o livro se passa em 2024. Tudo certo.
Aqui as pessoas do interior já são retratadas como ingênuas, tanto nessa parte em que elas - literalmente - aplaudem a protagonista por ter salvado a escola, quanto na parte em que Ayla é acusada de assassinato e todo mundo quer a cabeça dela, independente de existir provas ou não, ou de ela ser conhecida por todo mundo, já que é reforçado que é uma cidade pequena.
Somos apresentados à ONG e às três amigas da Ayla, que começam um papo aleatório sobre sexo e o fato da protagonista ser bissexual. Ela conta sobre como foi convidada por um casal pra um ménage e acabou só conversando a madrugada toda, tendo inclusive uma descrição da moça do casal desse jeitinho aqui: "Ela era muito linda, sério, parecia uma indígena do Japão (???)".
Aqui entra uma confusão também sobre tecnologia; todo mundo é proibido de ter celular, mas de algum jeito ela e as amigas têm, ela inclusive se comunica com a resistência pelo instagram. Aí acontece que o menino da katana era sobrinho de alguém importante, e no dia seguinte todos os animais da ONG e as amigas da Ayla estão mortos.
Detalhe que é zero choque pra ela, ela reage rápido pra fugir, não sofre, zero apego emocional ao projeto que ela pareceu ter investido boa parte da vida e às amigas. Ela começa uma jornada com a o Tamanduá, o Linguinha.
Boa parte do livro fiquei me questionando se eu estaria entendendo errado o objetivo do livro, se era pra ser uma sátira, uma paródia, porque o tom não batia em momento algum com o mínimo de seriedade do tema, que eu ficava me perguntando se eu tinha que levar os acontecimentos a sério mesmo. Até pesquisei sobre o projeto e não houve menção a algo do tipo.
Pois bem, Ayla viaja com Linguinha mais ou menos 180 quilômetros, andando ou no máximo de bicicleta - não tem menção a bicicleta na narrativa, mas todos os veículos com motor são exclusivos de um pessoal de classe superior-, em um tempo muito absurdo. Tem inclusive uma cena em que a Ayla "veste" o tamanduá com blusa e calça jeans por causa de cobra já que eles dormem na floresta (eu não consegui levar isso a sério, juro).
Novamente a gente tem uma pessoa do interior retratada como ingênua e enganável, porque a Ayla conta uma história pra uma menina de um bar dar comida pros dois. Poderia ter focado na gentileza das pessoas, teria sido um caminho bem melhor do que esse estereótipo.
Em Rio Branco, capital do Acre, Ayla procura por seu antigo professor de luta. Ela mente pra ele e pede pra ele treinar ela. Ah, ainda teve uma insinuação dela de que ela faria favores sexuais em troca de ter um lugar pra ficar e o professor fica todo sem graça dizendo que não faz nada com menor de idade, etc. Achei de muito mau gosto depois das perdas que ela sofreu (e que não foram aprofundadas em nenhum momento). Descrever o professor como gordinho me irritou também, a palavra é "gordo", não tem nada de mais nela.
A narrativa salta 2 meses e o professor descobre que Ayla na verdade é uma fugitiva e expulsa ela. Ela sai magoada e pede ajuda pelo instagram pra resistência, que marcam um ponto de encontro. É então que ela conhece Samira.
Samira é retratada como filha de uma "arcanjo" (é como são chamados o pessoal do governo, soldados, etc), que tem inclusive um computador em casa e é como conversa com o resto da resistência, pelo meets (eu falei que eu não sabia se levava a narrativa a sério ou não).
A resistência pede que Ayla mate o coronel que quer matar ela (tio do menino), ela não gosta da ideia de primeira e Samira me brota com a seguinte fala: "Assim, querida rebelde. Ser da nossa causa não é só querer, tem que fazer por onde. Somos todos assassinos, hackers, influenciadores e outros tipos de filhos da puta". Foi por isso que no início falei sobre não ter certeza se era uma sátira, porque pra ter uma resistência assim e menosprezar os próprios membros, é quase fazer chacota da oposição ao governo atual.
Samira também é retratada como uma menina rebelde e acaba tendo uma discussão besta com a mãe quando todas vão jantar (só porque a Ayla não comia carne e tinha carne nas comidas), com a briga as duas meninas vão pro quarto.
Elas se conheceram faz pouquíssimo tempo, mas na raiva de Samira, se beijam e transam. Do nada. Acho que seria mais um reforço à bissexualidade da Ayla, que foi muito mal retratada, desde a pensamentos super fora da realidade da Ayla como esse aqui "Fiquei boiando na cena um pouco, porque os peitos de Samira tinham um caimento fofo que não tinha notado antes, pareciam duas gotas. Provavelmente o sutiã dela era M." com esse trechinho aqui icônico, quando ela decide ir embora:
"Peguei minha espada, as informações que ele me passou, Linguinha, que estava traumatizado com tanta linguada em lugares que ele não esperava testemunhar, e vazei."
Tipo, sério isso? Era pra ser engraçado? Só tive vontade de revirar os olhos mesmo.
Aí vamos pra uma parte em que a geografia mandou lembranças. Do nada a Ayla vai parar em Tefé, no meio do Amazonas (outro estado, tá?), com uma distância de no mínimo 812 quilômetros. E a descrição é a seguinte:
"O primeiro lugar que parei foi Tefé, uma pequena cidade à beira do rio de mesmo nome, que se liga com o rio Amazonas. Na cidade havia uma missão extra, algo que queria fazer antes de seguir para Manaus, onde encontraria o cara que me queira morta".
Nem tem sinalização de que trocou o estado, inclusive na página seguinte tem um "Comer na estrada acabou com minhas economias e precisei tomar banho em hotéis dia sim dia não para passar despercebida".
Você não consegue fazer esse trajeto em estrada, de Rio Branco pr aTefé. Transporte é fluvial na maior parte do caminho e dificilmente se encontraria hotéis fora de municípios assim, no meio da Amazônia. Lembrando que o livro se passa em 2024. Um google rápido teria evitado esse problema, mas parece que é como sulista vê o norte: um amontoado de floresta em que você anda e vai parar em outro estado, distante mais de 800 quilômetros, aleatoriamente.
Aí ainda tem mais uma pérola nesse capítulo: Ayla diz sentir que tem sal no vento e que o sal comeu a madeira de um estabelecimento. No meio do Amazonas. Com os maiores rios de água doce do planeta. Eu entenderia se essa descrição fosse de uma cidade ali pro Amapá, perto do mar, onde o rio deságua, mas no meio do Amazonas não dá.
Aí quando Ayla tá quase sendo capturada nessa cidade, a Samira brota pra ajudar e elas vão juntas pra Manaus. Chegam lá e é aí que a merda acontece. Se alguém estiver me lendo, atenção pro gatilho de estupro e suicídio de mulher no próximo parágrafo.
--
Samira é capturada por um guarda, Ayla escapa e pega algumas informações na cidade, dopa uns guardas depois de roubar toscamente remédio de uma farmácia e vai atrás de Samira (antes ainda tem mais uma descrição aleatória sobre o sutiã preto de uma funcionária de quem Ayla rouba as roupas antes de dopar os guardas). Detalhe que é o tamanduá quem toma essa decisão de resgatar Samira. Ayla chega disfarçada onde Samira tá presa e encontramos o recurso narrativo podre de estuprar personagens mulheres. Samira tá toda ferrada, foi violentada, e Ayla mata o guarda empalado. Ela socorre Samira, e tem uma descrição bizarra da vítima: "seu sorriso era sincero, puro, como de uma criança que descobriu a bondade. É como me lembro dela". Samira puxa uma arma e dá um tiro na própria cabeça. Eu não ia fazer resenha desse livro até essa parte pular na minha cara e me matar de ódio.
Autores homens têm o péssimo hábito de usar estupro como recurso narrativo pra fortalecer personagens mulheres ou então só dar um fim trágico pra elas, e isso é horrível, inaceitável, violento e de mau gosto (principalmente em um livro que tá sendo aclamado como representativo nas resenhas). Essa cena e esse desfecho foram totalmente desnecessários porque não acrescentaram em nada na narrativa, inclusive foi romantizado, porque a morte de Samira se torna mais "força" pra Ayla matar o coronel e querer matar o rei, segue o trecho: "Carregarei esse peso pra sempre, mas usarei ele pra cravar ainda mais fundo minha espada em cada milionário e fascista que eu encontrar". Detalhe que essa situação toda ainda reforça como casal LGBT tem fim trágico, que nunca consegue ser feliz.
--
A narrativa acaba com um desfecho rápido, com a morte do coronel e com uma guerra na praça do teatro amazonas e com Ayla se juntando à resistência. Como um todo, a história é vazia, cheia desses furos que seriam resolvidos com uma pesquisa no google, com estereótipos e uma representatividade falha, beirando ao cômico.
Eu penso que se você quer escrever representatividade (e sim temos que ter representatividade), você precisa fazer isso com responsabilidade, ouvindo e contratando as pessoas que vão ser representadas pra lerem antes de publicar, pra evitar erros grotescos e absurdos como esses, que só reforçam uma visão estereotipada do norte e de seus habitantes. Achei de muito mau gosto, e novamente não entendi as resenhas positivas com todas essas problemáticas. Eu sinceramente queria não ter lido, queria ter desistido na primeira página e não insistido até o final.
A proposta era boa, mas com essa experiência pareceu uma proposta só pra encantar leitores contra o bozo, porque não houve responsabilidade nas representações.
Eu finalizo aqui meu comentário irrelevante (porque obviamente sou irrelevante, acho pouco provável que vá ter mudanças no livro ou que minha visão como mulher e nortista seja considerada) com um pedaço do livro que exprime bem como me senti durante e depois da leitura:
"...teatrinho tolo parecia uma cena de Os Vingadores, mas no Brasil que existe na mente dos sulistas".