Bookdreamer 06/04/2024
Uma obra curta que me fez refletir bastante, principalmente com diversos conceitos apresentados, os quais eu não tinha familiaridade, mas que conseguiram ser bem explicados e encaixados em toda a linha desenvolvida. Acho que li um pouco mais tarde, mas continua tendo seu simbolismo e sua importância. A seguir, encontram-se trechos destacados por mim que, apesar de lidos separadamente do pensamento desenvolvido possam ser confusos, me chamaram a atenção:
? Quando investigamos com atenção os traços psíquicos que compõem um determinado movimento? mesmo um movimento que nos pareça por alguma razão bizarro ou odioso?, não é raro encontrarmos muito desses traços funcionando também em nossas mentes, ainda que de maneiras diferentes;
? ?não rir, não deplorar, mas compreender?;
? Teoria dos cinco impérios (A Mãe, O Pai, o Filho, o Espírito e Amém;
? O fundamento psíquico de todo autoritarismo político é a projeção da fantasia de onipotência em um ser- humano supostamente especial;
? Segundo Safatle, seria necessário construir uma outra forma social, baseada não nos afetos do medo e da esperança, mas no afeto fundamental do desamparo, nossa condição originária, tal como descrita por Freud. Assim, poderíamos construir uma sociedade justa, igualitária e cooperativa;
? o regime mon-árquico, aquele cujo poder é de um, este um- outro no qual se projetam as fantasias de poder absoluto de muitos, mantém os homens enganados, iludidos, num sistema necessariamente ?religioso? de adoração a um poder absoluto. A adoração vem junto com o medo de que esse um- outro onipotente perca sua consideração por eles e volte contra eles o seu absoluto poder; ou com o medo de que a imagem hiperinflada do líder se quebre e que o véu de Maya, rasgado, revele a puerilidade da ilusão. A adoração também se faz acompanhar pela esperança de que ?o líder? os mantenha na mais alta consideração e satisfaça todos os seus desejos e necessidades, livrando- os de todo o mal e garantindo para eles um máximo de paz, estabilidade, segurança e controle. ? lutam por sua servidão como se fosse sua salvação;
? Como Deus, aos olhos de seus seguidores, Bolsonaro se tornou infalível. O que nos acontece de ruim? desemprego, pobreza, péssimas condições estruturais na saúde e na educação, fuga de capital, corrupção etc. - não são obra sua. São culpa de outros: das circunstâncias da realidade, da natureza, do STF, do congresso, dos governos passados, ?da esquerda? (capaz de incluir qualquer um que divirja minimamente da sua cartilha), da degeneração moral da sociedade etc., mas nunca dele, jamais dele. Tudo o que pode ocorrer de ?bom?, tenha mais ou menos elementos de realidade ou de delírio? auxílio emergencial, a vitória simbólica da moral cristã, a derrota dos inimigos corruptos e degenerados, a honestidade, a veracidade, a preparação para um futuro próspero etc. - tudo isso são obras exclusivamente suas e de mais ninguém;
? Poucas vezes na nossa história o povo brasileiro esteve tão bem representado por seus governantes. Por isso não basta perguntar como é possível que um Presidente da República consiga ser tão indigno do cargo e ainda assim manter o apoio incondicional de um terço da população. A questão a ser respondida é como milhões de brasileiros mantêm vivos padrões tão altos de mediocridade, intolerância, preconceito e falta de senso crítico ao ponto de sentirem- se representados por tal governo;
? Juntando Ivann Lago com Freud temos de compreender que Bolsonaro não está lá "apesar" de todas as atrocidades que diz e representa. Ele está lá por causa de todas as atrocidades que diz e representa. Está lá porque soube? ou souberam para ele? capturar e capitalizar em cima das forças agressivas e violentas que, por um lado, construíram a história extremamente agressiva e violenta do nosso país. As mesmas forças agressivas e violentas que, por outro lado, pelo cultivo de uma imagem idealizada e ilusória de humano associada a uma educação baseada em repressão, seguiram "proliferando no escuro", famintas por expressão. Ele é a voz dessas forças. Seja pelo sadismo ou pelo masoquismo. E enquanto for esse o tesão, será difícil nos livrarmos do bolsonarismo;
? Por isso o moralismo bolsonarista persegue tão violentamente todos aqueles que, com sua mera existência, sua forma de vida ou suas palavras, ameaçam revelar a falsidade das proibições/ repressões e ameaçam, por isso mesmo, provocar o choque de cada um com a realidade de um mundo (interno e externo) muito mais aberto, caótico e complexo do que poderiam suportar;
? Estamos também sob pressões ?etológicas?. Temos uma programação biológica que exige nutrição, respiração, sono e que impulsiona comportamentos de cortejo, exibição, competição, hierarquização e agressividade;
? Cada vez que comparece crença numa construção ficcional secundária, ela assume o peso de uma necessidade, se torna uma programação cultural, uma programação secundária que começa a valer para nós como se fosse uma programação biológica primária. Está constituído assim o reino daquilo que MD Magno chama de neo-etologia. Os símbolos, metáforas e ideias que talvez até nos tenham garantido uma certa maleabilidade frente às programações biológicas se tornam eles mesmos rígidas programações secundárias e nos tornamos novamente ?animais?. Animais secundários organizados em ?espécies? diferentes segundo sua própria ?tribo? cultural;
? O bolsonarismo assume feições rigidamente neo-etológicas. Não à toa parece cair tão bem aos bolsonaristas a metáfora do ?gado?. A crença numa rígida ordem moral do mundo, a crença numa certa configuração de família como ?natural? e ?correta?, a crença em papéis sociais bem definidos para homens e mulheres como ?naturais? e ?verdadeiros?, a crença em hierarquias socialmente construídas como igualmente ?naturais? e ?verdadeiras?, a crença em conspirações nacionais e internacional envolvendo planos e ações do amplo espectro daquilo que chamam de ?esquerda? para solapar essa ordem social ?natural? e ?verdadeira?, bem como a adoração a um ?líder supremo? envolvido por uma aura de divindade e infalibilidade;
? desejo de poder- prazer ou de gozar- poder, ou, numa palavra, como pulsão de onipotência;
? Em cada uma dessas vivências tribais há uma forte tendência à constituição de uma neo-etologia: a crença na ?naturalidade?, ?veracidade? e ?correção? de uma forma de vida e avaliação específica que faz com que passemos a viver quase inteiramente ?programados? por seus algoritmos, nos tornando meros reprodutores de programações pré- estabelecidas;
? Mas mesmo isso não deve ainda nos animar excessivamente. Mesmo que poderes superiores nos livrem de Bolsonaro, estaremos ainda muito longe de nos livrarmos do bolsonarismo e de tudo o que ele representa. A educação? não a formal, mas a real?, boa parte das mídias, a atuação micropolítica e, consequentemente, a política institucional estão nas mãos das igrejas cristãs. Vejam os concorrentes de Bolsonaro correndo atrás do público religioso;
? Esse tipo de tecnologia algorítmica torna completamente obsoletas as fantasias paranoicas noventistas sobre governos, alienígenas ou empresas multinacionais que pudessem ter o interesse de instalar ?chips? em nossos corpos ou em nossos cérebros para fins de vigilância e controle. Hoje cada um de nós compra o próprio chip, não desgruda dele nem por um segundo e passa o dia inteiro, desde o primeiro despertar até o último sono do dia, o alimentando com dados pessoais ininterruptamente. Cada teste divertido, cada foto postada, cada curtida e comentário revelam detalhes pessoais de nossas vidas, de modo que hoje, para monitorar minuciosamente a vida de qualquer cidadão, não é preciso ser um hacker, e nem muito menos um alienígena;
? (Por isso me agrada o termo ?ações afirmativas?. Não sei quão proveitosos podem ser os conceitos de ?reparação? ou ?dívida?. Trata-se de encarar realisticamente um passado que é de exclusão, marginalização e violência não para ?consertá-lo? [o que é impossível!], mas para a implementação de políticas eficazes para a construir afirmativamente um presente e um futuro para aqueles que ainda hoje sofrem os efeitos dessa nossa história);
? Não é possível ?se livrar? da pulsão de onipotência. É ela que faz o workaholic virar noites, é ela que mantém o depressivo em sua prostração, é ela que sustenta tiranias, é ela que provoca revoluções, é ela que nos leva à embriaguez alcoólica, é ela que leva o monge à castidade e à pobreza material. As religiões e os autoritarismos políticos operam uma tentativa de massificar e homogeneizar as fantasias de onipotência e fazem de tudo para obrigar a totalidade de um grupo humano a acreditar nos mesmos ?mitos?;
? Felizmente, a mesma pulsão de onipotência pode também se manifestar como desejo de libertação em relação a esses padrões de delírios sociais cristalizados;
? A libertação em relação às fantasias de onipotência socioculturalmente estabelecidas como hegemônicas exige que se assuma e se encare a experiência de desamparo, isto é, o saber ? já sabido por cada um de nós no percurso de aprendizado da pedagogia existencial da frustração ? que a onipotência desejada é absolutamente impossível. Eu não sou e não serei onipotente. Nenhum ?outro? é ou será onipotente a ponto de me presentear com a onipotência por mim desejada. Isso não significa que abriremos mão da pulsão de onipotência. Significa apenas que teremos a chance de nos libertar das fantasias de onipotência socioculturalmente estabelecidas como hegemônicas. Assim, abre-se para nós a possibilidade de criar meios de expressão singulares das nossas próprias fantasias de onipotência;
? Abre-se a possibilidade de assumirmos nossa absoluta singularidade;
? Isso é o que caracteriza a postura forte: a celebração da própria singularidade ? e não por ser ?moralmente boa?;
? Assumir a própria singularidade e aprender a expressar singularmente nossas fantasias de onipotência é a tarefa de uma vida, é toda a arte de viver. É preciso criar! Embarcar criativamente no movimento da pulsão;
? Como dizia Hegel, quem não gosta de senhores deve cuidar para também não escravizar ninguém.