Toni 01/05/2024
Perdas, amor e esperança
Quem de nós está preparado para, de repente, perder tudo o que construiu ao longo da vida? Ser coagido a viver sob a escolta do medo, insegurança e dor? Sentir-se compelido a deixar o seu "porto seguro" e partir pra um lugar desconhecido, com o qual não se tem vínculo nenhum? E, como consequência ainda precisar conviver com traumas tão profundos, que a única forma de sobreviver a esse inferno é criando "universos paralelos"? Foi o que fizeram as personagens de Afra e seu companheiro, Nuri, na tentativa de escapar do cerco feito pela guerra em Alepo (Síria) retratada por Christy Lefteri no magnífico "O homem que escutava as abelhas "
?Agora sei que Mohammed não virá. Entendo que ele foi criado por mim(...). A lembrança dele persiste, como se (...) ele tivesse tido vida própria.?
A autora desenvolve uma narrativa. comovente, repleta de aprendizados e lições de vida (a começar pela riqueza cultural dos lugares peculiares, pelos quais o leitor transita), a partir de duas perspectivas, perdas profundas, o que pode ser chamada também de devastação, porque não se trata de apenas uma guerra, cujas consequências tiram das personagens não somente sua dignidade material, mas principalmente sequestram-lhes parte de sua essência, manifestada pelas marcas inevitáveis que ferem duramente suas almas;
"(...)Criamos grandes coisas juntos, exatamente como você disse que faríamos. Mas esta guerra arrancou isso de nós, tudo que sonhamos e pelo que trabalhamos."
mas também, esperança (ainda que por um fio). Uma, se impõe imperiosa desde o inicio da narrativa, sem trégua; enquanto a outra, embora tímida, ainda assim é sinalizada pela vontade das personagens de enxergar alguma luz no horizonte, mesmo junto ao caos. Em Mustafá, por exemplo, quando
"Se você chegar a Atenas e não achar a gente, por favor, continue procurando. Por favor, tente chegar à Inglaterra, e se conhecer alguém que pareça boa pessoa, dê a ela o meu nome e, espero que ela o ajude a me encontrar."
A autora nos brinda com uma escrita delicada, minuciosa, fluida e de uma sensibilidade tão intensa e natural, que certamente o fato dela ser filha de refugiados, ter trabalhado em campos de expatriados na europa e, por isso ter vivenciado essa tragédia de perto, tenha lhe dado o embasamento necessário para construir com tamanha propriedade, essa linda história que já carrega em si uma representatividade na luta por dignidade e justiça a essas pessoas que, pra muita gente, ainda são invisíveis.
"Então, ela ficou calada por um tempo. Acho que as abelhas são como nós ? ela disse. - São vulneráveis como nós. Mas então existem pessoas como Mustafá. Existem pessoas como ele no mundo, e essas pessoas trazem vida, e não morte."
As abelhas em sua vulnerabilidade permeiam toda a história a partir de metáforas, nos indicando que, resilientes como nós, também são símbolos de vida e esperança, segundo a própria autora.
Enfim, uma história linda. Espero que ela sirva como uma bússola contra a violência e ignorância, sobretudo aquela consciente, velada ou conveniente.
" (...) Tudo isto me lembra que essas pessoas nunca viram a guerra(...)."