Gustota 20/06/2023Emporra-louquecer para não enlouquecerUma das séries de maior sucesso da última temporada foi Succession da HBO. A série trata da disputa dos filhos pela sucessão de um decadente conglomerado midiático chefiado pelo pai. No decorrer da série, vendo dívidas se acumularem e com pouca perspectiva de novos empreendimentos, os membros da grande corporação Waystar Rayco se veem tendo que negociar a aquisição da empresa com uma Big Tech europeia, a GoJo. Enquanto viajava para a Noruega e combinavam os termos da venda entre seus executivos, a CEO interina da Waystar, Gerri Kellmann, diz que os americanos levariam vantagem na negociação porque "diferente dos europeus, eles não viviam à base de programas sociais e por isso eles eram muito mais astutos e cruéis".
Há uma profunda ironia a respeito da forma de pensar da personagem. Uma pessoa privilegiada que está no topo da pirâmide e defende não uma meritocracia, mas numa espécie de darwinismo social cruel, onde não há pudores para garantir a sobrevivência do mais forte. Ao mesmo tempo, a empresa familiar da qual ela representa e que é guiada conforme os caprichos da família proprietária prevê uma obsolescência no modelo de negócios que opera e todos estão profundamente preocupados em caírem na rua e perderem o escandaloso padrão de vida milionária que ostentam.
Essa fala, como diversas outras falas e atos que sustentam o bacanal tragicômico de ostentação da família Roy são colocados de forma caricatural de propósito numa grande onda de produções estilo "eat the rich" que estão na moda nos Estados Unidos, como "White Lotus" ou "Triângulo da Tristeza". Uma onda que tem ganho cada vez mais força desde a grande recessão de 2008, quando processos de engenharia financeira pouco responsáveis de Wall Street mancomunados com agências de controle e consultores desonestos com renome das universidades Ivy League resultou numa implosão do mercado imobiliário e de diversos investimentos que funcionavam como fundos de aposentadoria para centenas de milhares de famílias americanas. Pessoas que planejavam a aposentadoria de repente se viram tendo que trabalhar em funções precarizadas para além dos seus sessenta ou setenta anos, mesmo tendo uma extensa formação acadêmica e experiência profissional em empregos de colarinho branco. Tendo grande parte da sua renda consumida pelo custo de moradia, muitos passaram a viver em vans e motorhomes.
O livro "Nomadland: Sobrevivendo à América do Século XXI" é uma extensa reportagem da jornalista Jessica Bruder acompanhando essa nova subcultura de trabalhadores, em sua maioria sexagenários, que moram na estrada e vivem de viajar os Estados Unidos em subempregos temporários. São uma classe muito particular, contudo. São em maior medida brancos, com educação formal, treinamento em profissões de escritório ou acadêmicos e um estilo de vida tipicamente de classe-média, envolvendo construção de família, investimento na aquisição de um imóvel e planejamento para aposentadoria. Foram todos vitimados pela crise de 2008, o achatamento da classe-média com relação à salários e custo de vida, principalmente na questão habitacional e uma significativa perda de aposentadoria que estava investida em ações. Incapazes de conseguir nova colocação profissional no mercado formal, muitos optam por um estilo de vida nômade, buscando subempregos que paguem a hora.
A reportagem de Jéssica Bruder começa como um retrato de trajetória de vida desses indivíduos com laços familiares fragilizados ou inexistentes, em idade avançada e buscando criar um sentido pra si através de laços entre pessoas que estavam vivendo o mesmo estilo de vida. Mas conforme a matéria vai avançando nesse tipo de personagens, é possível ver um quadro mais amplo e dramático da situação profissional de uma classe de trabalhadores sem qualquer vínculo formal de emprego, sem direitos trabalhistas e sem qualquer perspectiva de carreira, aquilo que o economista britânico Guy Stranding chama de "precariado". À sombra desse tipo de mão-de-obra, repousa uma reflexão à grandes empresas como a Amazon, uma das principais contratantes desse tipo de mão de obra (produzindo inclusive material de atração profissional voltado para esse tipo de funcionário). Ter esse tipo de mão de obra permite que a empresa consiga se evadir de pagar até 40% em impostos, enquanto seu CEO pode vir a se tornar o primeiro trilionário da história.
O que começou com uma breve reportagem a respeito de uma subcultura dos "workampers" acabou se tornando uma reportagem extensa de vários anos e que levou a própria autora a se tornar uma workamper por algum tempo. Acompanhando principalmente a trajetória da idosa-workamper Linda May, Jessica Bruder buscou ultrapassar a ideia média de que os trabalhadores eram uma espécie de "neo-hippies" livres e felizes, ao mesmo tempo em que não quis reduzi-los a pobres vítimas do cruel capitalismo. Nesse meio-termo, há um mundo complexo da nova velhice, onde pessoas com maior expectativa de vida, mas sem qualquer seguridade social precisam se reinventar constantemente no mundo. Algumas pessoas conseguem encontrar forças em si e em outros para descobrirem novas possibilidades de ser com pouco e de obter prazer na vida nômade. Outros, pelo contrário, acabam caindo na depressão, vício e numa linha muito tênue entre o despojamento e a total precariedade de um morador de rua. É nesse mundo tênue que a autora trabalha sua obra, como uma reflexão sobre a própria transformação dramática (e alguns dirão decadência) do modelo de vida americano.