Tatiana 16/04/2022
A polícia da memória
Uma breve sinopse: nesta ilha, as pessoas acordam com a sensação de que algo em sua memória sumiu. Desta forma, esse algo, não faz mais sentido para as pessoas, elas deixam de se importar com isso e seguem suas vidas. A polícia da memória existe com a função de garantir que todas as coisas que sumiram das memórias das pessoas deixem de existir fisicamente. Então, por exemplo, se pássaros deixam de existir na memória dessas pessoas, todos os pássaros e tudo que tenha relação com pássaros - estudos de pássaros, fotos de pássaros, livros de pássaros, profissões que trabalham com pássaros - deve ser destruído e banido da ilha (mas os pássaros continuam existindo fora da ilha).
Quando comecei a ler, fiquei com uma sensação de familiaridade pois parecia ser uma distopia com traços semelhantes à tríade das distopias - “1984”, “Admirável mundo novo” e principalmente "Fahrenheit 451”. E sim, a polícia da memória tem esse caráter autoritário e passa a agir de forma mais truculenta com o passar do tempo porque existem pessoas que não esquecem, passando a retirar essas pessoas da sociedade. A protagonista, que é uma romancista, faz parte do grupo que tem suas memórias perdidas e ela começa a levantar alguns questionamentos a respeito disso, pois ela sente que seu coração está oco e fica preocupada com a perspectiva de que um dia tudo desapareça de suas memórias. Afinal, o que resta de nós sem nossas memórias? Quem nós somos sem nossas memórias? Como mantemos nossa identidade sem memórias?
Por ser uma romancista, algumas partes do livro são trechos do livro que ela está escrevendo, e isso é bem interessante porque o que ela está escrevendo de certa forma se relaciona com o que ela vivencia em sua vida.
Como eu disse anteriormente, há traços de uma distopia e podemos tirar muitas reflexões a respeito. Mas para mim, essa narrativa alcançou reflexões muito mais profundas e eu vou tentar explicar isso de forma resumida. Enquanto distopia, podemos levantar a questão de como muitas vezes aceitamos as coisas sem questionar, principalmente quando as sugestões ou ordens provém de autoridades ou leis. Para as pessoas que tinham suas memórias perdidas, era bastante natural destruir tudo e procurar alternativas para seguir em frente sem aquelas coisas destruídas. Ninguém entende o motivo por trás dos desaparecimentos e a razão por trás da destruição. Tudo é simplesmente naturalizado. Inclusive, se você não gosta de ler livros em que não há respostas, talvez saia frustrado(a) da leitura. Ao longo da narrativa vamos acumulando muitas dúvidas e ansiamos por ter uma explicação sobre como funciona esse desaparecimento nas memórias e qual o motivo por trás, mas não há um esclarecimento. Eu particularmente, não me incomodei com a falta dessas explicações, pois em algum momento o livro passa a navegar por questões existenciais e filosóficas, se tornando mais profundo e reflexivo. Quando dei por mim, estava tragada em uma reflexão sobre a perda - em como há diferentes tipos de perda e como algumas delas são naturais e não há nada que possamos fazer a respeito senão aceitá-las como parte do processo de viver (como a morte, a juventude, a infância…), enquanto outras muitas vezes são retiradas de nós por aqueles que alegam ter mais poder (como nossa voz, nossas escolhas, nossa liberdade…).
Este livro me tocou de uma forma que eu não esperava. Fiquei impactada e com um sentimento agridoce por ter lido algo tão incrível, mas ao mesmo tempo inquietante, triste e que me deixou com uma crise existencial (assim que eu gosto).
Vou deixar algumas citações :
“E se as palavras desaparecerem, o que será de nós?"
“No momento em que você perde a voz, perde também a capacidade de dar forma a si mesma.”
“Talvez fosse infundada a minha crença , baseada no senso comum, de que ela me pertencia por direito, dada a facilidade com que minha voz me foi arrancada.”
“Mesmo sem sofrerem um sumiço oficial, muitas coisas em nossas vidas, um dia, desaparecem sem silêncio.”