Luiz Pereira Júnior 07/09/2022
Self-service
Durante a terrível Peste Negra, na Europa dos anos 1300, Giovanni Boccaccio escreveu o Decameron, obra que se tornaria um dos maiores clássicos da literatura universal de todos os tempos. Nela, um grupo de jovens foge da epidemia e se refugia em uma área rural. Para passar o tempo, eles decidem contar histórias a partir de um determinado tema.
O New York Times resolve fazer o mesmo e chama autores de várias partes do mundo para criar e contar suas histórias (baseadas ou na epidemia em si). É claro que, como toda antologia (?), o resultado é bastante desigual e bastante subjetivo. Assim, uma história que não me diz absolutamente nada pode ser um momento de iluminação para outro leitor; um tema que me deixa indiferente pode chamar a atenção de outro leitor que esteja passando por algum problema relacionado ao tema no exato momento em que o texto esteja sendo lido. E assim o que apresento é apenas um resumo de minhas impressões de leitura.
Eis um resumo dos contos/crônicas, mas lembro que boa parte desses escritos podem apresentar interpretações ambíguas (e isso acaba se tornando um mérito para o autor):
1) Reconhecimento (Victor Lavalle) – uma história de convivência em um prédio, que se vê esvaziado aos poucos, com uma surpresa ao final;
2) Um céu azul desses (Mona Awad) – um reencontro de um casal em plena pandemia e o que se transformou no decorrer do tempo;
3) A caminhada (Kamila Shamsie) – um passeio de duas crianças em uma Karachi devastada pela pandemia;
4) Histórias do Rio Los Angeles (Colm Toibin) – um relato surpreendente de tão verdadeiro da vida de um casal gay em plena pandemia e as consequências do isolamento (autoficção?);
5) Anotações clínicas (Liz Moore) – um casal apavorado com o fato de seu primeiro filho recém-nascido começar a apresentar os sintomas da Covid;
6) A equipe (Tommy Orange) – um empregado em home-office lembra-se da última vez em que esteve engajado em um grupo (atletas que treinavam para uma meia-maratona);
7) A pedra (Leila Slimani) – um escritor medíocre se torna celebridade e herói nacional ao receber uma pedrada durante uma entrevista de TV. Um ótimo retrato da mídia e do mundo literário. Uma observação: após o atentado à Salman Rushdie (sob hipótese alguma, um escritor medíocre), o conto parece admitir um sentido ainda mais sombrio;
8) Griselda, a impaciente (Margaret Atwood) – um alienígena sequestra grupos de terráqueos para preservá-los da pandemia e tenta lhes contar uma história para deixá-los menos assustados. Como não consegue traduzir adequadamente um texto que encontra em uma pesquisa na internet, o ET acaba fazendo uma confusão na história ao mesmo tempo em que a autora usa desse artificio para criticar acidamente e por vezes de uma maneira hilariante a sociedade em que nos encontramos (com ou sem pandemia). Um conto extremamente criativo, que nos propõe refletir, mas nos deixar entediados;
9) Debaixo da magnólia (Yiyun Li) – uma moça vai ao encontro de um casal para assinarem um testamento e se recorda de algo que fez em sua juventude;
10) Do lado de fora (Etgar Keret) – depois do toque de recolher e do fim da pandemia, as pessoas não querem mais sair de suas casas, sofrendo de uma espécie de amnésia, mas a polícia os obriga a sair de qualquer jeito. Belo início e um ótimo final;
11) Recordações (Andrew O’Hagan) – um desajustado social (nada de paranoico ou serial killer) vai à casa da mãe morta, provavelmente pela Covid, e queima praticamente tudo o que encontra lá, enquanto rememora o passado e sua relação conflituosa com a família;
12) A garota com a grande maleta vermelha (Rachel Kushner) – um grupo de escritores e seus cônjuges, confinados em um castelo na cidade de Wuhan, na China, berço da Covid, propõe-se a contar histórias. Ou seja, um círculo de Decameron dentro do próprio livro. Boa sacada, aliás. Apenas a primeira história é contada e tudo termina em um ótimo final surpresa;
13) Morningside (Téa Obreht) – um menino mora em um prédio e conhece uma moradora e seus três cães ferozes, que, dizem, são seus três irmãos que foram enfeitiçados para protegê-la. Um bom conto, mas um tanto déja vu;
14) Tempo de tela (Alejandro Zambra) – um casal conversa sobre o tempo que o filho deve assistir à TV, não apenas pelas noticias aterradoras da pandemia mas também para que o filho possa aprender com o mundo ao redor (ao menos enquanto podiam sair de casa);
15) O jeito que a gente brinca (Dinaw Mengestu) – um rapaz visita o tio já idoso, que é taxista, e decidem fazer uma pequena viagem juntos, como faziam muito tempo atrás. O original do texto é abordar esse sentimento tão pouco citado em livros: o afeto entre tio e sobrinho;
16) Linha 19 Woodstock/Glisan (Karen Russell) – ao contrário do conto anterior, este é centrado na motorista de ônibus, que apresenta uma maneira crua de ver o cotidiano em uma cidade assolada pela pandemia. A primeira palavra que me veio à cabeça para caracterizar o conto foi “urbano”. Mas o conto narra como uma parada no tempo (o tempo fica congelado durante alguns minutos) salva esse ônibus de um desastre em cima de uma ponte;
17) Se desejos fossem cavalos (David Mitchell) – dois prisioneiros conversam em uma cela em um jogo de fantasia e realidade, de sonho dentro de sonho, tendo, praticamente, o mesmo final de um dos contos anteriores;
18) Sistemas (Charles Yu) – não há narrativa. O autor tenta mostrar as pesquisas das pessoas confinadas em suas casas, no Google, como uma busca de contato humano ou simplesmente como uma forma de matar o tédio e a solidão;
19) O companheiro de viagem perfeito (Paolo Giordano) – um relato de um casal em meio à pandemia. Banal, sem grandes técnicas narrativas, sem surpresas, sem aprofundamento. Apenas duas pessoas confinadas esperando a pandemia passar;
20) Um gentil ladrão (Mia Couto) – um idoso afastado de todos recebe a visita de um agente de saúde e pensa estar sendo assaltado. Conto muito curto, mas bastante criativo, ao mostrar outros aspectos, outros ângulos do isolamento provocado pela pandemia;
21) Sono (Uzodinma Iweala) – ao que parece, pensamentos de um casal interracial se entrecruzam em meio ao trabalho de ambos em um hospital para tratamento de pacientes com Covid. Um daqueles contos super-pensados, com abundância de fluxo de consciência, trechos digressivos, mudanças abruptas de narrador, mas que, ao final das contas, parece ter muito pouco a dizer;
22) O depósito (Dina Nayeri) – um casal de intelectuais relembra seus dias de guerra no Irã e o início de seu amor adolescente no país devastado pela guerra;
23) Aquela vez no casamento do meu irmão (Laila Lalami) – em Casablanca, no Marrocos, duas mulheres esperam por um voo que poderá repatriá-las para algum país longe da pandemia. A narradora conta como veio dos Estados Unidos para a cerimônia de quarto casamento do irmão. O relato de um choque cultural em um bom texto curto;
24) O tempo da morte, a morte do tempo (Julian Fuks) – o autor narra a parada do tempo e a sua retomada ao visitar a casa dos pais. Uma crítica ao bolsonarismo (o autor é brasileiro), às fake news e aos regimes autoritários;
25) Garotas prudentes (Rivers Solomon) – uma garota negra, filha de uma presidiária, testemunha um crime cometido pelo chefe do presídio e passa a chantageá-lo para que ele solte a mãe dela;
26) História de origem (Matthew Baker) – uma família fica confinada com a matriarca da família e sua sobrinha-neta com quem ela não se dá bem. Um relato tocante, sensível (mais um pouco e chegaria ao piegas) sobre o confinamento e o amor familiar, mesmo com a distância entre as gerações;
27) A muralha (Esi Edugyan) – o encontro de um mulher e seu marido com duas aldeãs em um local perto da Muralha da China: um acontecimento tão trivial quanto o conto em si;
28) Barcelona: cidade aberta (John Wray) – um melancólico vendedor de seguros por telemarketing resolve alugar seus cachorros para pessoas que não aguentam mais ficar em casa durante a pandemia. Não sei qual o sentido de tanto descrição do uso de drogas se o próprio tema foi muito bem desenvolvido. Uma pena essa apologia tola;
29) Uma coisa (Edwidge Danticat) – mais um casal que tenta se reconectar por meio de suas conversas. Nada demais.
Enfim, diversão garantida em uma ótima edição da Rocco (capa dura, formato pequeno). Vale a pena, com certeza. É como se fosse um bufê de self-service: você pode não gostar de tudo o que tem ali, mas pelo menos vai poder provar um pouco de cada...