Coruja 20/08/2021Descobri esse ano uma mina de romances harlequin adaptados em mangá. Já discursei antes por aqui sobre dias em que temos certa necessidade de uma boa dose de açúcar na veia e, assim, não me parece surpreendente que em meio a tanto caos e ranger de dentes (a continuar do jeito que está, vou acabar deslocando a mandíbula), esse tipo de escapismo premência por um bom bocado estupidamente açucarado.
Durante algumas semanas em maio eu basicamente me empanturrei deles, quase ao ponto de um coma glicêmico - foram uns… trinta?... em sequência: são volumes de leitura rápida, já que em quadrinhos o texto se resume aos diálogos; histórias que não exigiam muita digestão antes de emendar com outra; e que constantemente me levavam às gargalhadas só de olhar os títulos.
Tenho uma teoria sobre romances e confeitaria: numa escala de complexidade narrativa, os romances mais fáceis e previsíveis são balas de caramelo açucaradas, daquelas que grudam no dente, mas matam o desejo imediato de doce; quanto mais facetado é o romance, mais camadas de interpretação você vai colocando nele, mais elaborada vai se tornando a sobremesa e aí você tem autores como Jane Austen, que seria equivalente a um Mil Folhas, um travesseiro de Sintra, um Santo Ambrósio ou talvez um Opéra. Hum… fiquei com fome agora...
[Dona Mãe fez um Opéra no dia dos pais aqui em casa. É uma sobremesa em várias camadas, feito com pão de ló de amêndoas, creme de manteiga de café e ganache de chocolate meio amargo. Uma das coisas mais maravilhosas que minhas papilas gustativas já sentiram na vida.]
Enfim, o problema de se abarrotar de balas de caramelo é que chega uma hora que a coisa enjoa (fora a dor na mandíbula de mastigar, mastigar, mastigar com a bala pregada no dente e colando suas arcadas dentárias). Assim é que, a determinada altura da minha overdose de açúcar, já meio cansada, dei-me conta de uma corrente subconsciente resmungando sobre padrões e mensagens afrontosas.
Padrões porque esses romances são muito repetitivos - não apenas em seus enredos, mas também nas características dos personagens, da linha de acontecimentos e mesmo no final “felizes para sempre”. Afrontosos porque, ler só um deles não faz grande diferença, mas quando você os consome da maneira que fiz, salta aos olhos a parada sem fim de mocinhas pálidas, estatuescas, vulneráveis, em sua maioria virginais (ou que nunca antes tiveram uma experiência sexual positiva), prontas a largar tudo em suas vidas para cuidar dos corações feridos de seus heróis viris, quase sempre milionários (e gregos, embora eu não consiga imaginar como pode haver tantos jovens magnatas gregos dando sopa por aí, especialmente depois da crise econômica por lá?).
Eu sei, eu sei, não se lê esse tipo de romance atrás de plots geniais, mas é exasperante perceber que, seguindo a linha deles, mulheres não têm nenhuma grande aspiração além de casar com um cara rico que cuide delas e ter filhos.
Foi nessa espiral de revelações não particularmente surpreendentes - mas desanimadoras de qualquer maneira - que bati o olho em Acorda pra Vida, Chloe Brown no Skoob de uma amiga (oi, Monique!). E a ilustração da capa, trazendo uma protagonista negra e acima do peso me capturou no ato.
Já falei antes que tenho tentando imprimir mais diversidade às minhas leituras e problemas de diversidade foram uma das razões de eu ter me exasperado com a sequência de romances que andava lendo. Assim é que li a sinopse de
Acorda pra Vida, Chloe Brown, dei uma olhada na autora, cheguei à conclusão de que não seria mais do mesmo, e alegremente passei-o à frente da pilha de livros para ler aqui em casa.
Após quase ser atropelada - e ver sua vida passar como um filme bastante monótono diante de seus olhos - Chloe decide que é o momento de providenciar um pouco mais de emoção para sua existência. Embora seja bem sucedida profissionalmente e cercada por uma família amorosa (contando seus pais bastante normais, duas irmãs mais novas muito presentes e uma avó celebridade que é um arraso), Chloe tem passado pela vida quase sem interagir com ela, superprotegida - em parte por decepções do passado e em parte por seu diagnóstico de fibromialgia.
A fibromialgia é uma síndrome que, entre vários outros sintomas, caracteriza-se pela dor crônica. Um esforço maior ou um aborrecimento simples podem desencadear uma crise. Não existe cura; apenas medicação para a sintomatologia. Hibbert certamente sabe desenhar o quadro do que é conviver com a doença - ela tem diagnóstico tanto para fibromialgia quanto autismo (que também vai aparecer mais tarde na série).
Enfim, Chloe decide fazer uma lista (essa é das minhas!) de ações para “acordar para a vida”. E é assim que ela vai parar no prédio em que Redford Morgan (ou simplesmente Red) é um zelador. Faíscas saltam praticamente desde o primeiro encontro e entre idas e vindas - incluindo um audacioso resgate de um gato do alto de uma árvore - os dois se apaixonam.
Red tem, claro, sua própria bagagem. No passado um artista em ascensão, o rapaz acaba de escapar de uma relação abusiva que minou toda a autoconfiança em seu trabalho. Sua maneira de pintar mudou junto com sua desconfiança em relação a mulheres que parecem ter tudo sob controle. O emprego de zelador foi arranjado por um amigo enquanto ele tenta encontrar seu ponto de equilíbrio e voltar a produzir arte.
É interessante que embora tenha alguns temas mais complicados - a convivência com uma doença crônica debilitante, depressão, ansiedade, o que vem depois de um relacionamento tóxico -,
Acorda pra Vida, Chloe Brown consegue ser uma história leve, que flui bem, te faz rir, se abanar e derreter a intervalos regulares. Não é um enredo excepcional, seguindo os clichês do gênero com propriedade (um clichê bem aproveitado às vezes vale mais que algo completamente novo e super complexo). O que conta pontos extras aqui é a representatividade da protagonista. É um título que provavelmente terá uma importância muito maior para uma leitora negra, acima do peso, ou alguém que conviva com uma doença crônica, e que não está acostumada a se ver nessas histórias. Sentir-se enxergada pode ser um ingrediente poderoso no quanto você se importa com um livro.
Por tudo isso, na minha escala de romances confeitados, ele merece a estampa de um pudim de leite com muita calda.
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