Procyon 20/07/2022
A lenda de Sigurd ? Resenha
A Saga dos Volsungos é uma pertencente à literatura nórdica clássica, escrita na Islândia no século XIII. O é desconhecido, não sabendo ainda, portando, se foi redigida por uma pessoa específica ou por mais de uma, tendo em vista que a história (como o texto de Beowulf), originária de tradições orais antigas escandinavas, foi composta em um contexto já cristão e monárquico, o que possibilitou que tais histórias orais fossem registradas na escrita e não se perdessem ao longo dos séculos, visto que monges e padres já redigiam textos
religiosos cristãos.
Elaborada em um contexto cristão, muito ainda se preservou de sua estrutura pagã, como os elementos fantásticos, advindos de um tempo primitivo da sociedade germânica, com personagens fabulosos ? deuses, gigantes, reis, heróis, feiticeiras, etc. A obra, que muito se assemelha à tragédia grega, narra a origem, o ápice e o fim da família dos Volsungos, descendentes do deus Odin. A trama tem como enfoque principal narrar os grandes feitos heroicos de Sigurd, o matador da serpente (ou dragão) gigante, Fáfnir, e de seu envolvimento em um triângulo amoroso com Brynhild e Gúdrun. O ciclo de Sigurd é umas das narrativas mais conhecidas e importantes dentro da literatura nórdica clássica, e está presente em vários poemas da Edda Poética ? que é, juntamente com a Edda em Prosa, de Snorri Sturluson, uma das mais importantes fontes de toda a mitologia nórdica e dos grandes mitos germânicos ? e recebeu uma diferente roupagem ao ser transcrito na Europa Continental, como A Canção dos Nibelungos.
J.R.R. Tolkien apresenta sua própria versão dessa grande lenda da antiguidade setentrional em dois poemas: ?A Nova Balada dos Völsungs? e ?A Nova Balada de Gudrún?, que contam o mito dos Nibelungos (Niflungs, nos poemas) de Siegfried (Sigurd) e de sua esposa Kriemhild (Gudrún), um dos alicerces da cultura germânica ? transformado em ópera por Richard Wagner e filme por Fritz Lang.
Na Balada dos Völsungs é narrada a linhagem do grande herói Sigurd, matador do dragão Fáfnir, cujo tesouro ele tomou para si. Conta-se de como ele despertou a valquíria Brynhild e de como foram prometidos um para o outro; de sua chegada à corte dos grandes príncipes Nibelungos, com os quais obteve uma fraternidade de sangue. Na corte surgiu grande amor, mas também grande ódio, provocado pelo poder da feiticeira Grimhild, mãe dos Nibelungos.
As temáticas são das mais diversas: paixões frustradas, dissociação de identidades, ciúme, traições, vingança, etc. A tragédia de Sigurd e Brynhild, do Niflung Gunnar e de sua irmã Gudrún escala, até o desfecho com o assassinato de Sigurd pelas mãos de seus irmãos de sangue, o suicídio de Brynhild e o desespero de Gudrún. Na Balada de Gudrún, conta-se seu destino após a morte de Sigurd, seu casamento a contragosto com o poderoso Atli, soberano dos hunos (o Átila histórico), como este assassinou seus irmãos, senhores dos Niflungs, e como ela satisfez sua mórbida vendeta.
Sigurd é o maior herói das lendas escandinavas, ganhando fama em quase toda a Europa medieval. A Saga dos Volsungos é a principal fonte sobre a lenda do matador de dragões Sigurd. Sua coragem e destreza é maior que a de seus antecessores, tanto que, em seu pós-vida, em Valhala, é escolhido para lutar no Ragnarök (o crepúsculo dos deuses) por conta de suas virtudes em vida. Nesse sentido, a certeza da morte e sua inevitabilidade é uma questão primordial nesse texto.
Há de ressaltar, aqui, o papel das mulheres. A maioria dos personagens femininos estão fadados a casar-se detrimento da pacificidade entre reinos (o que, ironicamente, nunca se apresenta). Corriqueiro na saga também são as mães permitirem que matem seus filhos, ou elas próprias realizarem tal feito. A função de personagens como Signy (mãe de Sigurd) bem como Grúdun (a consorte do cavaleiro) são vingar sua família, sendo ambas realizadoras de fratricídios.
Ressalto essa questão da feminilidade presente na obra pelo fato de que, ao tornar-se um épico nacional, passou um elevado destaque passou a ser delegado às personagens masculinas devido aos rumos que a recepção da narrativa tomou na história germânica. Junto da Canção dos Nibelungos, A Saga dos Völsung foi escrita com base na matéria épica tradicional da migração dos povos, entretanto, suas personagens nem sempre coexistiram ou tiveram contato em algum período de suas vidas. A Saga dos Völsung retrata, então, uma realidade que nem sempre era conhecida por seus leitores, excetuando-se o contato com a Noruega e as reminiscências incertas sobre os hábitos de seus ancestrais pagãos.
Interessante é que geralmente essas personagens femininas são deixadas em segundo plano. Essas obras constantemente relativizam sua existência baseando na afirmação de sua inferioridade, todavia, são essas mesmas personagens femininas que são as propulsoras da narrativa, definindo o futuro dos personagens masculinos através da manipulação do poder.
Percebe-se, ainda, alguns paralelos com as lendas arturianas. Um exemplo está no episódio do casamento de Signy com Siggeir, onde chega um sujeito desconhecido, mas que dá a entender ao leitor que tem certo conhecimento sobre as crenças nórdicas que este seria o deus Odin. Ele brande uma espada no tronco da árvore Barnstokk que fica no centro do palácio e anuncia que quem conseguir retirar aquela espada do tronco irá recebê-la como presente e perceberá que não existe no mundo espada melhor que aquela. Muitos homens nobres tentam tirar a espada, mas quem conseguiu foi Sigmund, filho do rei Volsung, algo que pode ser referenciado ao mito da espada Excalibur, um diálogo, portanto, entre literatura, mitologia e folclore. Assim como a lenda presente em A Canção dos Nibelungos e a Saga dos Volsungos passou da oralidade para a escrita, transformando-se em literatura, a lendária história do rei Arthur tornou-se um tópico nas produções literárias europeias do mundo medieval.
Em última análise, é muito interessante notar como que a história, a mitologia e a literatura desses povos antigos caminhavam juntas em prol do estabelecimento de sua rica cultura. Não é fácil trilhar a leitura da Saga dos Volsungos. Há uma imensa quantidade de informações, datas e nomes que o leitor desacostumado pode facilmente se perder no meio do caminho. Contudo, é um livro muito instigador no sentido de que, no final desse trajeto, o leitor consegue vislumbrar a beleza poética desses textos fantásticos. Desse modo, o leitor possui a possibilidade de desvendar não apenas a literatura, como os costumes e as construções culturais dos contextos medievais.