Ismael.Chaves 17/10/2023
O terror que habita a floresta
“Nas terras frias e desoladas do Sul do Brasil, no final do século 19, Anna Schutz, a jovem filha de um pastor, é obrigada a abandonar seu sonho de ser escritora para se casar com um homem rude e violento. Sozinha na vastidão da mata e cercada por uma presença antiga que se esconde no fundo das árvores, ela conhece a misteriosa e decidida Mathilde, envolvendo-se num ritual que a levará para o canto mais profundo de si mesma.”
Essa é a sinopse de "A Floresta", terceiro livro do escritor gaúcho Daniel Gruber, e o primeiro de sua carreira a abordar a temática do terror.
Partindo de suas pesquisas para a tese de doutorado em Escrita Criativa, Daniel se deparou com relatos assombrosos acerca de bruxas brasileiras nos séculos 17-19. Mas o mais perturbador disso tudo é traçar um paralelo, 200 anos depois, com a atual situação socio-política e perceber o quanto esse terror é real e assombra milhares de mulheres pelo Brasil todo até os dias de hoje.
Vivendo em uma colônia alemã na Serra gaúcha, Daniel utiliza-se deste espaço e de seu rico folclore para construir uma narrativa crível e perturbadora, ao mesmo tempo em que apresenta temas indigestos, mas importantes, como violência doméstica e intolerância religiosa.
Não se engane. Por trás de monstros na floresta e rituais demoníacos, o autor deixa explícita sua mensagem: ser parte de um determinado grupo social ou biológico, pode ser muito mais assustador do que seres imaginários.
Anna, assim como muitas mulheres de antes e de hoje, vivem um verdadeiro inferno na terra, ao verem seus sonhos e direitos reprimidos por convenções baseadas em princípios religiosos e um patriarcalismo ultrapassado, que vêem no medo uma arma física, psicológica e espiritual para garantir e justificar todo tipo de abuso e terror, em nome da “moral e bons costumes”.
Os homens, neste livro, agem como lobos ferozes, sedentos de luxúria e autoridade, que não pensam duas vezes em esmagar e “devorar” os sonhos, a esperança e a própria existência de Anna, como mulher e ser humano. Obras transmídias como "O Homem Invisível" e "Bom Dia, Verônica" já nos mostraram todo o horror advindo de relacionamentos abusivos, e A Floresta não poupa palavras para descrever todo o medo, angústia, desespero e raiva que o trio Anna, Johannes e Mathias nos fazem sentir.
Outro ponto que chama muito a atenção é a inserção, na narrativa, de elementos que dialogam com os contos de fadas.
Para muitos, isso pode parecer incoerente com um livro de horror, mas, como o pesquisador Alexander Meireles da Silva nos lembra: “os irmãos Grimm desenvolveram suas histórias a partir dos registros de narrativas alemãs coletados em meio a camponeses, pequenos comerciantes e outras pessoas de origem simples no campo e na cidade. (…) Inicialmente a obra era voltada para o público adulto em virtude da presença de elementos grotescos, violentos e de forte teor sexual, remetendo a sua origem no meio popular.”
Dois irmãos enfrentando uma bruxa maligna, um lobo à espreita na floresta, um caçador misterioso… É justamente essa intertextualidade que nos absorve para dentro desse universo, cercado de florestas escuras, superstições antigas e o medo do desconhecido, e nos permite identificar onde o verdadeiro mal se esconde. Afinal, nessa atmosfera de opressão e loucura, a catarse vem com um preço e uma indagação: o que você seria capaz de dar pela sua liberdade?
No excelente artigo “E eles viveram assustados para sempre“, os pesquisadores Oscar Nestarez e Nathália Xavier Thomaz ressaltam a atemporalidade dos contos de fadas e como eles estão enraizados em nossos maiores medos e defeitos:
“(…) nessas narrativas, o medo é um ingrediente fundamental, já que sua própria estrutura (personagens empurrados pelo destino rumo ao desconhecido) é bastante assustadora. Além disso, elas costumam carregar muitos dos elementos que hoje são constitutivos da ficção literária de horror, como abandono, violência, assassinatos, canibalismo, criaturas monstruosas, entre tantos outros.”
O QUE HABITA A FLORESTA?
“Pense bem antes de dar o próximo passo, pois se você entrar na floresta, a floresta entrará em você.”
Em seu livro The Uses of Enchantment: The Meaning And Importance of Fairy Tales, Bruno Bettelheim aponta o significado da floresta na literatura fantástica:
“Desde os tempos antigos da floresta quase impenetrável no qual nos perdemos tem simbolizado o escuro, o oculto, o quase impenetrável mundo do inconsciente. Se perdemos a noção que deu estrutura à nossa vida passada, agora deve-se encontrar o caminho para se retornar a nós mesmos, e ao ter entrado nessa selva com uma personalidade pouco desenvolvida, buscamos a saída conseguindo encontrar em nosso caminho uma humanidade muito mais desenvolvida que emerge.”
A jornada de Anna pela floresta é uma busca por seu verdadeiro “eu”. Como qualquer personagem na literatura ou cinema, o livro termina com uma Anna diferente daquela que conhecemos no início da leitura.
A questão é que tudo o que vemos dela nesse processo, já estava lá, desde o princípio. Psicologicamente, a floresta não transforma ninguém, apenas desperta e expõe o que há de melhor e pior dentro de nós. Assim, nesse simbolismo junguiano, a floresta — lugar de mistérios, do primitivo, onde antigas religiões cultuavam a natureza e seres ancestrais, onde a sobrevivência requer sacrifícios — a parte inconsciente da mente humana desperta em seu estado mais primitivo e nos confronta com nossos maiores medos.
Nas mãos de alguém sem essa bagagem cultural, o resultado poderia ser medíocre. Mas, nas mãos de alguém como Daniel Gruber — que já explorou e dissecou o lado mais selvagem e podre do ser humano no ótimo Animais Diários — essa experiência se torna intimamente inesquecível para o leitor.
Mas não pense que "A Floresta" é só um apanhado de referências ou uma adaptação sombria de algum conto clássico. Nada disso! O autor utiliza desses arquétipos para construir sua própria história, em um intrincado quebra-cabeça cheio de reviravoltas, que mexe com os medos pessoais de cada leitor. O medo do desconhecido. O medo do outro. O medo de nós mesmos. Em certa medida, todos nós somos o herói e o monstro em nosso próprio universo complexo.
E o verdadeiro terror é descobrir que, afinal, a floresta habita dentro de nós. Por isso, "A Floresta" é, sem dúvida, um dos melhores livros do terror nacional.