Stella F.. 04/04/2024
Contar ou não contar?
Minha vida de rata
Joyce Carol Oates - 2020 / 384 páginas
Somos logo de início apresentados à Violet, a filha mais nova de uma grande família, com irmãos e irmãs. Seus pais são Lula e Jerome. Violet nascida em 1980 tem a ilusão de ser a filha preferida do pai, mas se dá conta que todas foram preferidas antes dela. Conforme a narração avança, percebemos que há uma clara distinção de tratamento entre meninos e meninas, principalmente por parte do pai. Esse pai foi para o Vietnã e sempre está com amigos, e volta bêbado para casa. Os irmãos são uma proteção para as meninas da família no colégio, mas eles aprontam muito. Percebe-se grandes segredos entre os pais. A família é de irlandeses católicos e seus membros são brancos. Moram em Niágara do Sul onde um rio importante foi sendo poluído por detritos. Jerome já não olha a esposa como antes. A cada parto olha menos para ela, e acha que é tudo culpa dela. Em um salto temporal, Violet tem 13 anos e vai morar na casa de uma tia, e tomamos ciência de um julgamento de dois dos seus irmãos. A narração é feita por Violet, mas em algumas passagens percebemos que está nos transmitindo falas ou pensamentos de outros personagens. Nesse primeiro momento conhecemos esses poucos detalhes, que ao longo da narrativa vão sendo esclarecidos, de maneira paulatina, com idas e vindas temporais.
Violet tinha 12 anos quando os irmãos que ela idealizava se envolveram em um acidente com um aluno negro da mesma escola deles, que era um ótimo desportista. Eles o atropelam de propósito, após muita bebedeira, e não satisfeitos usaram um bastão de beisebol para feri-lo. Não acreditavam que um tipo de brincadeira dessas teria tantas consequências, afinal eles eram brancos e o menino negro. Culparam os policiais por investigar o caso, os levarem para a delegacia, tentaram alegar que a culpa era do carro que o pai deu para eles, do taco de beisebol que estava na mala do carro, alegaram que o menino usava drogas, que foi só um acidente, que eles não queriam machucá-lo. Violet acaba descobrindo que algo está errado, porque tinha o hábito de escutar os irmãos, sem eles saberem, quando eles voltavam da rua. Ouviu uma conversa baixinha entre eles no dia do acontecido, mas não entendeu muito. Além de ela ter visto eles escondendo a arma do crime. Ela tem medo de ter que dar uma declaração, porque na família dela o lema é estar unido, em qualquer situação. Ela repassa a todo momento em sua cabeça o acontecido, mas muitos fatos foram “esquecidos”. "Eles só sabiam que eu sabia que estiveram envolvidos numa briga naquela noite. Não tinham motivo para suspeitar que eu sabia do taco." (posição 1054)
Os irmãos são julgados e pegam penas por homicídio doloso. Violet é agredida de propósito por Lionel, seu irmão, e bate com a cabeça na escada que estava cheia de gelo. É atendida no hospital, mas quando estava dopada, febril e ao delirar acaba contando toda a história a quem estava por perto. Os policiais são chamados e ela conta do ataque do irmão à ela. Como tem apenas 12 anos é colocada sob custódia e a proíbem de voltar para a casa. Sugerem a casa de um parente, onde ela permaneça em segurança. Vai para casa de uma tia, irmã da mãe, e lá a tia Irma e o marido não têm filhos. Ela é bem cuidada, mas não gosta de lá. Sente saudades, mas ninguém de sua família entra em contato. Apenas uma das irmãs entra em contato com ela de vez em quando. Violet é considerada "rata", delatora, traidora. Na escola sofre com as aversões que sentem por ela, por ser rata. E ela está cada vez mais pensando e se arrependendo do que fez. Sente muito medo dos irmãos apesar de estarem presos.
Violet mudou de cidade e escola. Ela está mais velha e tem um professor, Sandman, que sabe tudo sobre a vida dela, e ironicamente, dissimuladamente parece que a protege. Ela fica desconfiada, mas acaba aceitando. É o único que parece se importar. Mas os problemas estão só começando. Ele a assedia discretamente. Ela cai então na armadilha (e fica a posteriori se perguntando por que foi parar lá, não reagiu, não teve palavras para dizer que queria voltar para casa). Ele sempre oferecia bebidas quentes a Violet, ela ficava atordoada e mesmo assim retornava sempre. "Eles me perguntariam - Por que você beberia qualquer coisa que aquele homem lhe desse? Por quê, depois do que aconteceu da primeira vez?" (posição 2467) Ela dizia que cada dia era sempre o mesmo dia, porque não se lembrava de nada. "Não houvera primeira vez. Todas as vezes eram a mesma. Não havia uma vez mais recente, e não havia um tempo presente." (posição 2467) O professor começa a mostrar seus preconceitos sobre os negros, e pelos títulos de sua biblioteca fica claro que é a favor da eugenia. Violet fica sem ação em sua presença. "Com o medo do homem, havia uma dormência de intelecto: eu tinha parado de pensar de maneira racional." (posição 2546)
O tio de Violet, Oscar, começa a se mostrar esquisito, a assediá-la. A esposa Irma ainda não desconfia. Um dia Violet chega em casa e escuta sua tia ao telefone, e acaba sabendo que seu avô morreu, um avô que não gostava, mas que viveu um tempo na casa da família em um quartinho. O pai de Violet detestava o pai, mas achava certo acolhê-lo. Ela então pensa em encontrar a família no enterro. Ninguém dá força para que ela vá à igreja, mas ela pega um ônibus e segue rumo ao enterro. Chega atrasada e fica no fundo da igreja. A irmã a vê e fala que ela deve ir embora. O plano não deu certo. Não esteve com os pais. Na volta a tia descobre que o marido está assediando a sobrinha, porque o marido pacato mudou de comportamento, está sempre bêbado, não fica em casa, volta de madrugada. A tia pergunta à sobrinha, mas na realidade não aconteceu nada, só algumas cenas horrorosas. A tia resolve se separar do marido e Violet sai de casa, sem se despedir dos amigos.
Descobrimos que Violet guarda todo ano um dinheiro que envia anonimamente para a família de Hadrian, o menino negro assassinado pelos irmãos. Não sabe se tem algum sentido, mas vê a necessidade de se desculpar de alguma maneira.
Violet se inscreve em uma empresa de limpeza para fazer faxinas. A sua primeira faxina é na casa de um homem, Orlando Metti, metódico, cheio de manias, que nem enxerga as faxineiras. Na outra vez que pede faxineira quer que seja somente Violet. Ela fica meio ressabiada e acabada porque trabalha demais. Ele começa a pedir mais coisas a ela depois do expediente como levar o cachorro da filha para passear, fazer compras na farmácia, entre outras coisas. Ela vai fazendo para receber mais dinheiro e fica sem jeito de lembrá-lo que tem que estudar à noite. Até o dia que ela dorme sem querer na cama dele após a faxina, e quando ele retorna à casa, ficam juntos. Começam a se relacionar. Ele dá a ela presentes, joias, vestidos, carro, mas de vez em quando ainda pede coisas de faxineira a ela. Ela cuida do cachorro com todo carinho, porque senão ele mandaria matá-lo. Ele tenta de todo jeito controlar a agora amante, e antiga faxineira. Um dia a vê conversando com um negro, ele se torna violento, e ela foge dele. Em represália ele a calunia no emprego, e exige que ela devolva todos os presentes. Apesar de pedir desculpas a ela, não reatam. Ele deixa o cachorro na frente da casa dela, para ela cuidar, apesar dela não ter condições financeiras. Ela mais uma vez deixa uma cidade, com medo de Orlando Metti.
Nesse meio tempo Violet sempre fica apreensiva de o irmão Lionel ser solto em liberdade condicional. Se passaram muitos anos, e não ter sido liberado antes, apesar do bom comportamento e do estudo dentro da prisão. Agora ela sendo uma adulta, não terá mais o apoio de antes, institucional. Jerr, seu outro irmão, acabou morrendo na prisão após brigar lá dentro e aumentar o tempo de pena.
Violet passa a viver em Mahowk depois de fugir do namorado. Encontra um antigo amigo de escola Tyrrell que agora é professor. Sua irmã Katie liga para dizer que a mãe quer vê-la e falar da morte do pai que morreu de repente. Ela encontra a mãe com câncer, fazendo quimioterapia, que não a reconhece, apesar de ao final da visita falar que Violet Rue demorou muito para voltar. Há um encontro com Lionel que foi solto por completar a pena, e parece estar tranquilo em relação a ela. Saem para ver a casa antiga da família, e lá acontece uma confissão. Lionel confessa que ele assassinou o jovem negro. Ela começa a se apavorar e o pior acontece, Lionel a ataca e ela foge pelo pior barranco. Ela consegue fugir para o que ela agora considera sua casa. Sabe que nunca voltará a conviver com sua família, algo que esperou por toda a vida.
Romance forte que fala de assassinato, família, família disfuncional, racismo, assédio sexual, estupro, falta de autoestima, violência. Um dilema surgido quando Violet tinha apenas 12 anos e descobriu sem querer os detalhes do assassinato do menino negro. Esconder ou contar? Um dia que estava doente, acabou com febre contando entre meias palavras, e sem querer (ou querendo, por sentir empatia pelo menino negro), é considerada rata, traidora, e depois disso passou por tudo que vemos acontecer no livro, com ela e sua família. Uma vida cheia de percalços e de autopunição. Livro intenso, muito bom, mas que poderia ser mais enxuto. Um livro que te prende do início ao fim. Excelente escrita!