Carla.Parreira 04/03/2024
ABUSO - A CULTURA DO ESTUPRO NO BRASIL (Ana Paula Araújo). Melhores trechos: "...Para escrever estas páginas, fiz uma extensa pesquisa e conversei com todos os personagens envolvidos na questão aqui tratada. Entrevistei vítima de abusadores. Falei com profissionais da saúde, da justiça, com policiais, carcereiros, pesquisadores e autoridades. Foram quase cem pessoas, de norte a sul do Brasil, em lugares como Rio de Janeiro, Belém, Ilha de Marajó, Porto Alegre, Teresina, Recife e São Paulo. O que encontrei foram vítimas de todas as idades, classes sociais e níveis de instrução que foram violentadas nas mais diferentes situações, inclusive as mais corriqueiras, que fazem parte da vida de todos nós. Há mulheres abusadas a caminho do trabalho ou da escola, idosas atacadas enquanto dormiam dentro de casa e mulheres violentadas quando estavam em busca de atendimento espiritual. E há um número impressionante de crianças, inclusive algumas muito pequenas, em casos que desafiam a nossa compreensão sobre a maldade humana... Buscar atendimento médico também não é simples. O direito aos remédios contra infecções sexualmente transmissíveis, à pílula do dia seguinte e ao aborto em caso de gravidez decorrente do estupro é garantido por lei, mesmo que não haja queixa na polícia, mas a lei não funciona como deveria. O que mais comumente se vê é falta de medicamentos em postos de saúde, profissionais de saúde desinformados ou até que se recusam a cumprir o dever por desconhecimento da lei, preconceito ou convicções e crenças pessoais. Sem falar no exame físico de corpo de delito, que é, no mínimo, desconfortável e constrangedor, e que deve ser feito logo após a vítima ter sofrido com o crime, e que pode gerar novos traumas para uma mulher já tão fragilizada... Pela lei , a mulher que engravida em decorrência de um estupro pode realizar o aborto a qualquer momento, porém é quase impossível que algum médico interrompa uma gestação saudável quando o feto atinge esse estágio mais adiantado de seu desenvolvimento... A resposta vem sem rodeios: ‘Sinto muito mais raiva da juíza. Muito mais! Porque, do maníaco, eu não posso esperar outra coisa. Um homem desses tem que ser preso, retirado da sociedade, não tem jeito. Agora, a juíza, tudo o que ela poderia fazer de ruim, ela fez. E isso veio de alguém que representa uma instituição pública, uma pessoa escolarizada, que teve condições. Por isso mesmo, eu cobro muito mais. E ela, ainda por cima, também é mulher!’ Se a vítima já tem todas essas dificuldades para elaborar para ela mesma oque aconteceu, imagine diante de familiares, amigos, autoridades policiais, promotores, juízes... No hospital ou posto de saúde, na delegacia, no tribunal, serão muitas as vezes em que uma vítima vai precisar repetir e reviver o crime quando decidir denunciar. Não é fácil. Descrever o que aconteceu para amigos e parentes — e, muitas vezes, acusar alguém próximo de todos — também é bem complicado. Se contar, mesmo para as pessoas mais próximas, já é uma decisão das mais difíceis, denunciar, então, é para poucas, e essas poucas que têm coragem de fazê-lo encontram praticamente nenhum apoio. Infelizmente, mais de 90% dos municípios brasileiros não possuem uma Delegacia da Mulher... No universo dos bandidos, o julgamento é outro. Quando a meninas e torna ‘esposa’, ainda que à força, os traficantes encaram esse relacionamento como normal, uma união como qualquer outra. Já o estupro coletivo é visto como uma farra entre amigos, em que a vítima escolhida sempre tem culpa, por estar no meio de bandidos ou por ter usado drogas. No máximo, dependendo da situação, é um castigo contra a mulher que, de alguma maneira, tenha afrontado o poder por eles representado. Os traficantes, entretanto, não veem o estupro coletivo como um crime de abuso sexual. Pelo contrário, eles próprios abominam crimes de ordem sexual e ameaçam estupradores nas cadeias. É difícil entender a lógica que rege esse comportamento... Em muitas ocorrências como as aqui citadas, as vítimas não conseguem reagir, o que a psiquiatria e a literatura forense chamam de ‘paralisia do estupro’. É um fenômeno cerebral, uma imobilidade extrema, que acontece também em outras situações — como quando uma mãe que vê o filho sofrer uma queda grave e não consegue socorrê-lo, ou nem sequer gritar, ou quandoum navio está naufragando e algumas pessoas não conseguem correr para osbotes. Não é uma escolha, e sim uma impossibilidade, por razões ainda não muito conhecidas... Sem saber que esse é um fenômeno ainda pouco explicado, a vítima tende a se culpar, e não apenas isso: há implicações legais também. Como já vimos, a definição de estupro nos Estados Unidos incluía, até 2012, apenas episódios em que havia luta ou resistência contra o agressor. Nesse episódio da Espanha, a imobilidade foi usada para desacreditar a jovem, mas, ao fim, o Tribunal entendeu que a vontade dos agressores não se impõe apenas pela violência, mas também pela intimidação... Os dados do sistema penitenciário reforçam a enorme diferença entre a quantidade de estupros cometidos por pessoas do sexo feminino e masculino. Em 2018, nossas cadeias tinham 30.868 homens presos por crimes de estupro, estupro de vulnerável e atentado violento ao pudor. Apesar de esse último ter sido excluído do código penal em 2009, ainda há quem esteja respondendo por crimes que foram enquadrados na lei anteriormente à mudança. Também há os delegados que registram esses episódios de forma errônea, qualificando-os como um crime que nem existe mais em nosso país. Entre as mulheres, havia um número bem menor: apenas 369 detentas encontravam-se encarceradas pelo mesmo tipo de crime, sendo que, desses casos, 82 eram qualificados como estupro e 38 como atentado violento ao pudor. A maior parte, 249, respondia por estupro de vulnerável... O uso de álcool e outras drogas é uma das desculpas mais recorrentes entre os estupradores. A impressão que se tem é que eles transferem toda a culpa por seus atos para os entorpecentes, tentando dar a entender que, em seu estado normal, jamais seriam capazes de cometer os crimes atrozes pelos quais foram condenados. Porém, segundo o psiquiatra Miguel Chalub, para que as drogas sejam a verdadeira força motriz por trás de um crime como esse, seria preciso que o limiar de controle do cérebro fosse afetado, ou seja, seria necessário baixar o controle. A maconha não é capaz de fazer isso, nem mesmo a cocaína. O álcool, por sua vez, até poderia fazer isso em certo grau. É uma droga lícita, e realmente abaixa o nível ético, diminui o controle, amoral da pessoa. Em alguns casos, pode acontecer de a consciência da pessoa que ingeriu doses consideráveis de bebida alcoólica ficar muito diminuída, mas isso não é algo comum. Na maior parte dos casos, a pessoa sabe muito bem o que está fazendo. A bebida e o uso de outros entorpecentes também não aliviam nenhum estuprador na esfera criminal. Quando o indivíduo toma a decisão de beberou de se drogar, torna-se responsável por tudo o que acontece a partir daí. E, de acordo com nosso Código Penal, se o estuprador decide usar drogas ou bebidas para então ‘criar coragem’ e cometer o crime, o uso dessas substâncias é, inclusive, um agravante que pode aumentar a pena... Foi-se o tempo em que a esposa era propriedade do marido. O Código Civil ainda estabelece obrigações conjugais, mas o sentido é outro. A lei fala em fidelidade, vida em comum no domicílio conjugal, mútua assistência, respeito e consideração, isso tanto para o marido como para a esposa, valendo para os dois lados. Por muito tempo, o chamado ‘débito conjugal’ foi interpretado erroneamente como obrigação de fazer sexo, mas, mesmo nessa interpretação, o não cumprimento dessa ‘obrigação’ pode, no máximo, embasar um pedido de divórcio ou a anulação do casamento. Nenhuma lei autoriza, nem jamais autorizou, ninguém a forçar sexo com outra pessoa, ainda que seja cônjuge. Isso é crime de estupro, e talvez o tipo de estupro mais difícil de ser provado, mas, mesmo assim, continua sendo crime. É preciso que todos saibam disso... Pelo fato de o estupro ser considerado, de acordo com o Código Penal brasileiro, um crime hediondo, a pena necessariamente sempre tem que começar a ser cumprida em regime fechado, e há regras mais rígidas para a progressão para o regime semiaberto, quando o preso pode sair da cadeia durante o dia para trabalhar ou estudar e só precisa voltar para a penitenciária às dezoito horas. Se, para crimes comuns, a progressão do regime pode vir depois do cumprimento de um sexto da pena quando o detento apresenta bom comportamento, nos casos de crimes hediondos é preciso cumprir um tempo maior no regime fechado: pelo menos dois quintos da pena...”