Marker 15/05/2020Algumas anotações:
-Até quando estupro (sobretudo feminino) como elemento chave de desenvolvimento narrativo (sobretudo de personagem masculino)? Me parece especialmente perverso, e deliberado, que a personagem em questão seja lésbica. Obviamente não sou contra a representação dessas situações na arte, mas usá-las como mero acessório de amadurecimento do protagonista é um pouco estranho. E por falar em desenvolvimento de narrativa, me incomoda um pouco o tratamento unidimensional e pontual dedicado a alguns personagens. A única função de Carol é ser uma mulher sedutora e infiel que atiça Martín? O gringo é apenas uma alegoria da ganância latifundiária? Existia algum desejo de operar, pouco que fosse, pelo viés da farsa, e por isso as dimensões são achatadas e seus contornos evidenciados? Por vezes me parece que é o caso.
-O termo 'regionalista' implica vários debates, mas acho possível posicionar 'Andarilhos', primeiro romance de Rodrigo, nesse universo sem grandes problemas. Falando especificamente em linguagem, a construção textual daquele tinha algo de didático em concomitância com um tom fabular, que ajudava muito na aclimatação da história de peões, pampas, um universo gauchesco em geral. Então nesse novo romance, que apesar de se passar no mesmo ambiente tem tom e pretensão muito mais urbanas (trata afinal de um retorno às raízes), é estranho que o texto siga soando algo pomposo, heroico, fabular. Por exemplo, lembro de um trecho que diz: "Nunca simpatizou com o famoso jeitinho brasileiro. Preferia o correto, mesmo que mais difícil." Nada de problemático na afirmação, mas uma construção um tanto dura, talvez, engessada? Questão de opinião?
-Sigo gostando, no entanto, do exercício de trazer para um contexto moderno essa cultura tão específica do sul do Brasil, e fazê-lo através de uma literatura híbrida, campo-cidade, e sobretudo uma literatura de bibliófilo. Desde as referências diretas a Érico Veríssimo, José Hernández/Borges, Mario Levrero, e as mais enevoadas, como Henry James, é notável um esforço de não emular mestres, mas aprender com eles, beber de fontes valiosas e investir num universo que, apesar de bem representado enquanto tropo, não ser exatamente o mais popular na literatura contemporânea.