4ndrewnunes 16/04/2020
Eu nunca vou entender os caminhos de Deus
Encontrei esse livro abandonado, cheio de poeira, acompanhado de muitos outros livros religiosos de caráter duvidoso. Esse, porém, me chamou a atenção, por falar de algo que pessoalmente me interessa demais: Como os evangélicos lidam com a comunidade LGBT+
O livro funcionou pra mim como uma mistura de dois gêneros. Metade da leitura foi de uma biografia - um homem contando sua história, desde a infância até a fase adulta. Descobri um pouco sobre o submundo carioca dos anos 60, época da descoberta sexual do autor, então, adolescente. Ele conta sobre seu crescimento em um bairro pobre e sua família "careta", sobre o sonho de um jovem em subir à 'parte alta' da sociedade, sobre as multiformes experiências religiosas que teve, etc. Quero ressaltar que o autor escreve bem! Não é o que eu esperava, sendo honesto. Ele sabe como conduzir o livro.
Entretanto, a biografia é exaustivamente intercalada com comentários bíblicos ou de opinião do autor, que se tornou mais tarde um "assembleiano roxo". Então, sim, há comentários preconceituosos. Comentários homofóbicos, transfóbicos, machistas e intolerantes. Mas, apesar de eu discordar de todos eles, e ter torcido a cara sempre que aparecia mais um - e aparecem muitos! -, eu gostei de ter lido esse livro.
Na página 88, terceiro parágrafo, o autor diz da ida a uma boate gay:
"Assim, partimos em caravana rumo ao túnel das trevas, o submundo dos homossexuais. Deixei-me persuadir mais uma vez pela amizade do mundo e não da de Deus. Que personalidade fraca era a minha! As pessoas que não têm opinião própria são como que joguetes nas mãos dos incautos."
Acredito que essa passagem diz muito sobre o que o livro realmente é. A perspectiva do autor é clara desde o início; para ele, a prática homossexual e as religiões pagãs que conhecera na adolescência foram a causa de sua posterior tristeza e perdição. Minha análise de sua vida, porém, me sugere outro ponto de vista.
O jovem João cresceu estando longe de sua verdadeira identidade. Na adolescência, ele teve o desprazer de experienciar o descobrimento de quem era por meio de pessoas mal-intencionadas. Se tornou, infelizmente, "joguete na mão de incautos". O menino que era ainda menor de idade, foi abusado de várias formas pelas mesmas pessoas que o proporcionaram uma nova vida como gay e macumbeiro, por assim dizer. Tais traumas, com certeza, levaram à decorrente tristeza e sentimento de vazio que o acompanharam durante sua vida. Quando o autor, no "clímax" do livro, encontrou Jesus, aprendeu de seus novos mentores espirituais o que qualquer evangélico pentecostal aprenderia: o motivo de sua solidão era o pecado da sua orientação sexual, e fruto de maldições causadas pelo culto aos deuses africanos. A paz que a religião o proporcionou, veio acompanhada de uma ideologia tradicionalista que, por fazer sentido, se torna a verdade dele.
Lendo esse livro, a ideia que tive do autor é de que ele se tornou uma pessoa amorosa, sabe? Eu gostei de acompanhar a vida desse cara, eu simpatizei com ele. Ele não se tornou a pessoa que odeia aqueles que vivem como ele viveu; na verdade, a sua vivência parece tê-lo tornado um cristão mais compreensivo do que geralmente são. Eu esperava um homem cuspindo veneno com prazer, cegado pelo preconceito e intolerância (como muitos evangélicos quando falam de sexualidade ou de outras religiões). Mas o que vi foi alguém que viveu triste e, quando finalmente encontrou paz, ela infelizmente veio acompanhada de uma doutrina que é preconceituosa. O próprio autor, na página 101, diz: "É interessante que Deus é um Pai tão perfeito que não se preocupa em fazer exigências para nos receber em seus braços seguros, senão apenas a fé". Então, logo depois, ele confirma o que aprendeu sobre as cartas de Paulo e João e como elas alegadamente dizem que homossexuais e membros de outras religiões vão para o inferno.
Ao final do livro, eu fico feliz pelo João por ele, finalmente, conseguir viver com alegria e paz no coração. O triste é que, para isso, ele acreditou que precisava abdicar de sua sexualidade. Não houve ninguém que pudesse mostrá-lo que é possível viver com amor, fé e dignidade, e ainda amar alguém do mesmo sexo.
As pessoas que, na sua adolescência, lhe ofereceram aceitação, lhe arrancaram a paz. Anos depois, os que ofereceram a paz de Cristo, lhe ensinaram que Cristo só dá paz a um homem gay se ele nunca mais amar outro homem - se ele viver sem se aceitar. Acho triste, mas eu nunca vou entender os caminhos dos homens, muito menos os caminhos de Deus.