Coruja 15/05/2018Cronologicamente a sexta das crônicas de Nárnia, A Cadeira de Prata funciona, digamos, como o último volume da trilogia do reinado de Caspian X. Dessa vez, Eustace segue para o outro mundo sem os primos, levando consigo uma colega de escola, Jill Pole - ambos estão fugindo dos grandalhões que adoram fazer bullying - e acabam atravessando uma porta direto para o país do próprio Aslam.
Eustace cai de um precipício logo de cara, sendo soprado para longe pelo Grande Leão, deixando Jill, que não sabe o quê ou quem realmente é Aslam, sozinha com ele. O medo e a incompreensão quase paralisam a menina, até que ela consiga trocar palavras com Aslam, receber dele instruções para salvar um príncipe perdido e depois ser soprada como Eustace foi pouco antes, até Nárnia. Lá chega em meio a despedidas e grandes festejos, nobres e povo reunidos num cais, onde um navio se prepara para partir.
A primeira instrução de Jill seria avisar a Eustace que, quando ele chegasse em Nárnia, veria um velho amigo e deveria imediatamente se identificar para ele e falar de sua missão. O problema é que ela só faz isso quando o navio já se foi, e depois de Eustace descobrir que quem estava a bordo era justamente o Rei Caspian, um Caspian idoso, que ele foi incapaz de reconhecer.
O primeiro sinal perdido dá o tom do resto da aventura, toda narrada do ponto de vista da própria Jill, que, estando pela primeira vez em Nárnia, enxerga aquele mundo com admiração e espanto, algo que faz a saga se renovar aos olhos também do leitor. Com a ajuda das Corujas (!!!), eles encontram Brejeiro, um paulama (criaturas de braços e pernas longas, habitantes dos pântanos) pessimista, que lhe servirá como guia na jornada para encontrar o príncipe Rilian.
Posso dizer que o pessimismo crônico de Brejeiro é uma das coisas que mais me fez rir nesse livro? Ao menos, até o momento em que suas previsões cada vez mais catastróficas começam a acontecer… mas a despeito disso, ele é um personagem com a cabeça no lugar, capaz de agir no momento de pressão, ainda que isso signifique se machucar bastante. Brejeiro é leal, não desiste e não se dá por vencido e fazer tudo isso com uma natureza tão cética é tanto contraditório quanto fascinante. Seu discurso para a bruxa, sua defesa do ‘mundo de cima’, do sol, da liberdade, é, na minha opinião, uma das cenas mais marcantes de toda a série.
"- Uma palavrinha, dona – disse ele, mancando de dor –, uma palavrinha: tudo o que disse é verdade. Sou um sujeito que gosta logo de saber tudo para enfrentar o pior com a melhor cara possível. Não vou negar nada do que a senhora disse. Mas mesmo assim uma coisa ainda não foi falada. Vamos supor que nós sonhamos, ou inventamos, aquilo tudo – árvores, relva, sol, lua, estrelas e até Aslam. Vamos supor que sonhamos: ora, nesse caso, as coisas inventadas parecem um bocado mais importantes do que as coisas reais. Vamos supor então que esta fossa, este seu reino, seja o único mundo existente. Pois, para mim, o seu mundo não basta. E vale muito pouco. E o que estou dizendo é engraçado, se a gente pensar bem. Somos apenas uns bebezinhos brincando, se é que a senhora tem razão, dona. Mas quatro crianças brincando podem construir um mundo de brinquedo que dá de dez a zero no seu mundo real. Por isso é que prefiro o mundo de brinquedo. Estou do lado de Aslam, mesmo que não haja Aslam. Quero viver como um narniano, mesmo que Nárnia não exista. Assim, agradecendo sensibilizado a sua ceia, se estes dois cavalheiros e a jovem dama estão prontos, estamos de saída para os caminhos da escuridão, onde passaremos nossas vidas procurando o Mundo de Cima. Não que as nossas vidas devam ser muito longas, certo; mas o prejuízo é pequeno se o mundo existente é um lugar tão chato como a senhora diz."
É fácil reconhecer o mito da caverna de Platão nessas palavras. É uma das inspirações que parece mais óbvia ao longo do texto. Há uma defesa, aqui, da fé cristã de Lewis, mas é também uma defesa para a fantasia, para nos perdermos (e também nos encontrarmos) em histórias, pois o mundo ‘real’ da feiticeira não basta, pois ‘as coisas inventadas parecem um bocado mais importantes do que as coisas reais’. Não é a primeira vez que Lewis faz uma defesa como essa em suas histórias, especialmente quando se leva em consideração que ele muitas vezes iguala praticidade e pragmatismo com falta de imaginação e crueldade.
Ao mesmo tempo - junto com O Cavalo e seu Menino - A Cadeira de Prata é, das crônicas, a que tem uma estrutura mais próxima de um conto de fadas. Há instruções a serem seguidas, e a cada sinal perdido, existem consequências, por vezes terríveis. Há gigantes e feiticeiras, serpentes e príncipes enfeitiçados. Muito da história também me faz pensar no mito de Orfeu e Eurídice - como Eurídice, a rainha morre picada por uma serpente. Rilian, procurando vingança, acaba desaparecendo para o que vamos descobrir mais tarde, é um mundo subterrâneo que não fica muito a dever ao Inferno mitológico. A própria jornada de Eustace, Jill e Brejeiro especialmente em seus momentos finais desesperados, parece ecoar a proibição ao músico no mito: ‘não olhe para trás’.
Há algo agridoce em A Cadeira de Prata. Parece que sentimos que os grandes dias de Nárnia já passaram, o renascimento trazido pela coroação de Caspian em Príncipe Caspian apenas uma breve lembrança da Era de Ouro, quando os Pevensie primeiro foram reis e rainhas em Cair Paravel. Voltando aos temas bíblicos, é bem relevante o fato de a grande vilã da história ser uma feiticeira de beleza sedutora que se transforma em serpente: é impossível não pensar ‘Jardim do Éden’. A serpente aprisiona Rilian por dez anos no subterrâneo; e ele, que a procurou inicialmente por vingança, acaba seduzido por sua beleza e cai em seu encantamento.
Não temos tempo de ver as consequências desse trauma. Vamos embora com Jill e Eustace pouco depois de Rilian ser resgatado e encontrar o pai pela última vez. Mas podemos imaginar: um rapaz que não teve tempo de lamentar a morte da mãe antes de ser levado pela assassina dela; que passou uma década escravo da vontade da serpente com breves momentos de lucidez, suficientes apenas para amaldiçoar sua própria existência e não encontrar qualquer esperança; e que ao voltar, tem tempo apenas de receber a benção do pai uma última vez, antes de também perdê-lo e, depois disso tudo, assumir o trono e suas responsabilidades. Por melhor governante que Rilian venha a ser nos ano seguintes, como negar que a escuridão, uma vez mais, conseguiu avançar sorrateiramente para dentro de Nárnia?
Lewis nos leva por uma curva nesses três livros: começando por um reino em decadência que nega suas origens e se convulsiona numa guerra civil, atingindo o clímax numa era de paz e prosperidade suficientes para que seu rei possa se lançar em aventuras ao mar, e então a perda de Caspian e as incertezas que daí derivam.
O que esperar então, do que virá a seguir? Especialmente quando sabemos que o último livro é também A Última Batalha? Bem, preparem as trombetas, companheiros narnianos, porque o apocalipse vem por aí…
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