NINAZEN1K 15/03/2024
A maldita Christine
Quando você lê Stephen King, você já espera encontrar eventos fantásticos sem muita explicação, aquele elemento clássico transcendental. Aqui temos uma semelhança com o mesmo efeito de “Salem”, uma ressonância de eventos passados que acontecem ciclicamente, que perpetuam em lugares, objetos e - neste caso - no carro. Essa repetição, inclusive, é um dos pontos mais interessantes do livro (como no motivo da morte da filha de Lebay ser igual ao da quase morte de Leigh). E também tem aquela tensão até a última página: você não sabe quem vai viver ou morrer. Tudo isso ao som da WDIL dos anos 50. A caracterização de tempo-espaço é muito boa, te transporta para dentro da história, para os dias de sol, para os dias de neve, para os anos 80. E isso torna ainda mais triste e nostálgica a passagem do tempo.
Mas, de verdade, o que sempre me conquista por inteiro é a parte humana da coisa. Christine não é só um thriller, não apenas uma história de carro-assassino-descontrolado. Christine é um livro de crescimento, amadurecimento, de fim da adolescência, de saudade das coisas da infância, tristeza pelo perder de ingenuidade. É a tal da “nostalgia antecipada”. O carro separa eles: e isto também é alegoria. Arnie muda drasticamente. Não mudamos todos nós? Christine se aproveita da rejeição, da raiva, da fúria inesgotável de um adolescente controlado pelos pais e excluído pelos colegas. Essas relações parentais são outro ponto chave, que revelam muito de Dennis, Arnie e Leigh conforme vai se entendendo cada núcleo. Christine pega a natureza e a corrompe.
A narração do Dennis é mais uma das partes fantásticas, queria que tivesse sido o livro todo, mas me agrada o modo como foi feito também. E ele traz aquele comum “spoiler, mas não spoiler” do que vai acontecer depois. E ele nos proporciona trechos maravilhosos, de um amor eterno, de choro, de coragem, de amizade. Quanto carisma, quantas recordações de cada momento.
E é tão bonito o modo que se descreve esse perder alguém que tanto conheceu e amou, e perder para o tempo porque esse alguém ainda vive, mas não existe mais.
“Onde um dia eu e Arnie brincamos de amarelinha e pique-estátua. Nós dois subimos na árvore do meu quintal, até o último galho, e nele gravamos nossas iniciais.Comemos todos aqueles sanduíches clandestinos de Pão Maravilha. Meu Deus do céu, nós ainda temos muita coisa para fazer. [...] Acho que você nunca esquece. Eu também amava o Arnie. E talvez não seja tarde demais para ele, ainda agora. Bom Deus, permita que eu salve Arnie da morte só mais uma vez. Apenas mais esta última vez.”
Sem dúvidas, uma das finalizações mais brilhantes do Stephen King. Meu tipo de livro favorito do autor. Porque o tempo passa para ele, numa narrativa fantástica, mas também passa para nós, do mesmo jeito, simples leitores da vida real, que estamos sujeitos a esquecer alguém que marcou e esteve conosco por tantos momentos especiais da vida, gente que o tempo simplesmente levou.
“Estou quatro anos mais velho, e o rosto de Arnie começa a ficar indistinto para mim, uma fotografia desbotada num antigo anuário escolar. Eu nunca teria acreditado que isso poderia acontecer, mas aconteceu"