Lucas 17/01/2019
Astúcia e criatividade: Os principais atributos de um romance policial acima da média
O passar das décadas sempre é capaz de gerar relevantes mudanças no que se entende por literatura. Há muitos segmentos "momentâneos", que surgem no gosto popular e desaparecem com a mesma velocidade com que chegaram. Tal dinamismo, que possui um forte viés comercial, pode afastar novos leitores; nem todos possuem a personalidade ideal para desfrutar de determinado "boom" literário e acabam, por isso, vendo o ato de ler como algo totalmente diferente do que ele realmente é: um ato de prazer que hipnotiza, na maioria das vezes, saudavelmente.
A mesma mutação literária acelerada gerada pelo passar dos anos acaba por ensinar que apenas dois tipos de literatura são as mais eficazes em fisgar e prender novos leitores: o romance policial e a fantasia. Tal ponto é corroborado pela preponderância de livros desse tipo em recomendações de obras que fazem o indivíduo gostar de ler, e, no caso mais eficiente e até saudável, tornam a leitura um hábito. Outro aspecto que justifica essa dominância surge do alto grau de associação que ambos os tipos de literatura são capazes de causar: enquanto o romance policial se constrói a partir do mistério, que prende a atenção do leitor em torno deste, a fantasia atua de forma mais sensível na imaginação, no encantamento, que também acabam por seduzir quem ainda não vê a leitura como um hábito (como as crianças recém-alfabetizadas, por exemplo).
Se J.R.R Tolkien (1892-1973) e C.S. Lewis (1898-1963), respectivos criadores das sagas O Senhor dos Anéis e As Crônicas de Nárnia, são os grandes símbolos da fantasia literária do século XX, a inglesa Agatha Christie (1890-1976) é quem melhor traduziu o encantamento do romance policial no gosto dos leitores: seus mais de oitenta trabalhos, todos permeados por mistério e obscuridades, são uma prova disso.
Na verdade, todo o que cerca Agatha Christie é pomposo: estima-se que quase 4 bilhões de livros seus já foram vendidos. Seu livro mais famoso, E Não Sobrou Nenhum (também conhecido no Brasil como O Caso dos Dez Negrinhos, de 1939) teve mais de 100 milhões de cópias vendidas. Tudo isso faz dela a pessoa que mais vendeu livros no século XX e faz com que, também estima-se, Christie esteja apenas atrás da Bíblia Sagrada e das obras do seu conterrâneo William Shakespeare (1564-1616) em termos de livros comercializados.
Em Assassinato no Expresso do Oriente (1934), a autora explora seu principal protagonista: o detetive Hercule Poirot, personagem principal de praticamente metade dos romances de Christie. A história começa com a sua viagem de volta à Londres, saindo de Istambul por meio do chamado Expresso do Oriente, uma linha de trem que ligava o extremo leste europeu à Europa Ocidental (atualmente, essa linha não existe de forma contínua, mas por volta da década de 1930, que é quando se passa a narrativa, ela era popular). No meio de um rigoroso inverno, a narrativa acompanha a viagem, interrompida na antiga Iugoslávia por uma forte nevasca e marcada por um assassinato cruel, na qual todos os passageiros são suspeitos. Poirot, naturalmente, se incumbe de tentar desvendar o crime, e é por meio dele que o leitor perceberá a genialidade da autora em descrever os fatos, sempre deixando uma pequena "nuvem de dúvidas" que aos poucos vai se dissipando.
Como todo excelente romance policial, Assassinato no Expresso do Oriente é instigante e torna-se ainda mais curto por isso (a linda edição da editora HarperCollins possui menos de 200 páginas), já que é impossível que o leitor deixe a obra de lado por muito tempo. Tudo isso é provocado pelos já mencionados mistérios que cercam a identidade do assassino e pelos detalhes que vão sendo desnudados pela narrativa. Estes são tantos e tão inteligentes que, várias vezes, o leitor retornará nas páginas para identificar tal "mecanismo" que apenas Poirot percebeu. E a solução do crime é revelada apenas nas últimas cinco ou seis páginas e, outra característica marcante de um romance policial diferenciado, traz a sensação de ser algo óbvio. Christie "brinca" com os seus leitores ao construir um desfecho bem do tipo "como eu não pensei nisso antes?".
Sob um ângulo mais prático, a autora fez aqui uma contundente análise moral a respeito de um caso de assassinato brutal. Christie se baseou no chamado Caso Lindbergh, que chocou os Estados Unidos na década de 1930, para amarrar a narrativa do Assassinato no Expresso do Oriente. Tal caso foi o sequestro de uma criança que, mesmo após o pagamento do resgate, foi cruelmente assassinada. A questão moral que a escritora faz aqui é a da possível (ou não) justificativa para a execução de um fugitivo que esteve envolvido em um crime tão bárbaro. A justiça pelas próprias mãos é motivo de grandes discussões durante a narrativa e por isso é um elemento fundamental que coloca todos os doze passageiros do trem em suspeita e auxilia na resolução do caso.
Assassinato no Expresso do Oriente não é robustamente literário, nem serve para relatar e analisar um contexto histórico. É uma obra que entretém, com um texto leve, infestado de diálogos e que traz uma empatia natural a qualquer tipo de leitor (especialmente os recém-chegados ao hábito da leitura). É uma pequena amostra da genialidade de Agatha Christie, que com seus mistérios, enigmas e muita astúcia, construiu uma morada sólida entre os grandes escritores do século XX.