Divórcio em Buda

Divórcio em Buda Sándor Márai




Resenhas - Divórcio em Buda


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Henrique Fendrich 23/09/2019

Sándor Márai e a questão do casamento
Parece que um dos temas mais caros ao escritor húngaro Sándor Márai era o do reencontro de amigos para resolver histórias significativas de suas vidas. Assim foi em “As Brasas”, seu romance mais conhecido, e da mesma maneira em “Divórcio em Buda”, embora este último não trate de amigos, apenas conhecidos. Em ambos os casos o ambiente é preparado na primeira parte do livro para que na segunda o encontro aconteça, ocasião em que um dos envolvidos inicia um monólogo com a reconstrução do passado em comum. Curiosamente, nos dois livros a conversa se justifica por uma terceira pessoa, mulher, ausente no reencontro. Mas se em “As Brasas” a existência dessa pessoa interfere na história de uma longa amizade, em “Divórcio em Buda” ela leva ao fim de um casamento. O matrimônio, aliás, com todas as suas convenções e exigências, é o tema central deste segundo livro.

É a história de Kristóf Kömives, que atuava como juiz de divórcios em Budapeste, embora reconhecesse que sua atividade estava em conflito com o direito divino. Porque, para ele, o casamento era uma convenção moral que precisava ser aceito como tudo que vinha de Deus, não cabendo, portanto, qualificá-lo como “perfeito” ou “imperfeito”. O divórcio, nessa visão, não passava de uma intromissão da intenção humana naquilo que era divino. “A vida são deveres, que devem ser cumpridos; naturalmente deveres pesados e complexos, que algumas vezes devem ser suportados com sacrifício”, acreditava. Para Kömives, uma família de verdade é aquela em que pais e crianças se querem bem e essa concórdia interna é capaz de fazer com que suportem brigas, castigos, tabefes e mau humor, sem que ninguém ganhe tremores na alma por conta disso. Cumprir o dever também era silenciar tudo que fosse dúvida, desagregação, ambição instintiva e irresponsabilidade individual.

Mas Kömives sentia que, de um modo geral, o edifício da família estava desabando. Muito se falava sobre a própria falência do casamento. Nos sintomas de degeneração da família, o juiz enxergava os da própria sociedade. E pensava na família em que foi criado, sob a ausência da mãe, que havia fugido com outro homem. Seu pai havia suportado o sofrimento com dignidade. Kömives, seu irmão e sua irmã nunca foram de falar sobre o que sentiam. À seu modo, todos cumpriam o seu dever. O curioso é que, depois de adulto, isso passou a não ser suficiente para o juiz. Ele queria saber o que se passava com seus irmãos, já que eles nunca diziam o que pensavam. Mas ele próprio pouco tinha ânimo para falar de si (é digna de nota a cena em que sente tontura após emitir uma opinião divergente).

A tontura era humilhante e indigna de uma pessoa da sua autoridade. Alivia-se ao perceber que ela não fora notada por ninguém ao redor. Mas como desejava que pelo menos Hertha, a sua esposa, percebesse! É quando os deveres de um casamento não bastam mais a Kömives e ele é capaz de se perguntar para que serve de fato uma relação, já que a sua própria esposa não consegue perceber quando ele se sente mal.

Ao voltar para casa naquela mesma noite é que, surpreendentemente, Kömives é aguardado pela visita de um antigo conhecido, o médico Imre Greiner. O juiz sabia que no dia seguinte havia de julgar o processo de separação entre ele e Anna Fazekas, também sua conhecida. Greiner conta então a sua trágica história – é a parte do monólogo, recheado de questões existenciais. Assim como Kömives, o médico acreditava em um casamento indissolúvel, mesmo sem o amor, que não passava de um acaso maravilhoso, um raro fenômeno.

Podia-se viver junto de forma imperfeita, pois já é bom não estar só, já é bom se um concorda com o outro. Mas a relação de Greiner esfria, ele sente que Anna não está mais totalmente ao lado dele, e de alguma maneira isso tem relação com o juiz, que havia sido para ela uma possibilidade não realizada de amor.

É basicamente o conflito entre possibilidades e obrigações a matéria de que Sándor Márai se ocupa neste livro. A diferença entre o que se vive e o que se sonha. A decisão sobre o que fazer quando aquilo que se sonha é diferente daquilo que se vive – a separação, a conformidade ou a infelicidade. Os dois conhecidos lidam de maneira diferente com este problema. E juntos levantam questões ainda bem presentes para uma sociedade cada vez mais afeita ao divórcio.
Maria 06/10/2020minha estante
Excelente resenha! Grande livro! Para ser lido muitas vezes (como vários outros desse húngaro genial).




Jacqueline 31/03/2015

Do grande intervalo que separa a noite (espaço dos sonhos) do dia (tempo do real)
“Um acidente, idiota e impessoal... Trombou com alguém no caos do mundo, a alma avariada continuou seu percurso, mas nunca se curou.”
Estaríamos mesmo fadados a viver nenhum ou somente um encontro verdadeiro na vida? E as outras relações que carecem dessa intensa sintonia fina, seriam menores? Serviriam como rota de fuga?
O amor é o tema ou a questão-problema do romance. A pergunta o que é o amor”, perpassa toda a narrativa: “amar talvez seja uma coincidência de tempos”, é uma das respostas dadas.
Como corolário dessa pergunta, emergem reflexões sobre o que sustenta formas menos genuínas e intensas de amor e o que faz com que algo que carregado de tanta intensidade de repente se esvaia.
Na primeira parte do livro, conhecemos o juiz Kristóf Kömives - homem beirando os 40 anos, preso à tradição e aos costumes, adepto da renúncia e da humildade, que, na Budapeste dos anos 30, se torna um juiz especialista em divórcios – e as circunstância em que conhece as duas partes de um casal (um médico e sua esposa) que vive o processo de divórcio, cuja sentença será dada por Kristóf.
Na segunda parte do livro, sob a ótica do fracasso, tomamos conhecimento da história amorosa do casal, por meio de uma densa conversa que tem a duração de uma noite, no melhor estilo de As brasas.
Como sempre, Sándor Márai toca fundo e nos faz pensar sobre nossas escolhas e o quanto são pautadas pelo dia ou pela noite.
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Luciene 18/07/2009

Solidez quebradiça
A escrita de Sándor Márai é tão elegante quanto suas observações sobre as relações humanas são precisas. Já ao fim do primeiro capítulo, na construção da personagem do juiz Kömives, vislumbramos toda a melancolia que faz parte do universo do autor. É uma melancolia que ecoa a de Bernardo Soares, em seu Livro do Desassossego. Márai nos apresenta um Kömives que reflete sobre um mundo cujo lento declínio revela a decomposição das relações sociais existentes até então. Seu mundo. Ele pressente que a sociedade de Buda será, aos poucos, contaminada pelos novos modos já dominantes em Peste. Não é à toa que Márai fez de Kömives um juiz. Duvidamos se toda a força de suas convicções será suficiente para mantê-lo firme ao vento das mudanças e de suas próprias dúvidas.

A descrição da secreta desintegração de seu pai e as pistas sobre sua relação com os irmãos nos permitem conhecer melhor esse juiz e adivinhar possíveis vulnerabilidades. Nos perguntamos o que ele pensa acerca do amor. E o mais interessante é como ele parece suspender o juízo e não julgar nem seu pai, nem sua mãe. Sentimos vontade de conhecê-lo melhor, ao longo da narrativa. E Márai constrói detalhadamente um retrato íntimo do juiz Kömives: a influência do padre Norbert, as tonturas repentinas, a resposta inesperada dada ao presidente do conselho, a angústia provocada pela falta de percepção de Hertha e pela sociabilidade vazia de sua irmã: tudo converge para o que parece ser um conflito de Kristóf com seus próprios valores, algo que o velho presidente do conselho já adivinhava ao observar o jovem juiz. E Kömives vai se tornando uma personagem cada vez mais interessante.

O encontro entre Kristóf e Imre é, sem dúvida, o centro do romance. E deixa uma impressão forte tanto na leitura quanto na releitura, justamente por evocar o impacto daquele outro encontro, perdido no tempo. 'A noite terminou; começa o dia'. Assim termina essa narrativa, após Imre ter ajudado Kristóf a dar sentido ao seu mal-estar. A última sentença ecoa a epígrafe que Márai escolheu para seu livro, retirada de uma balada do folclore da Transilvânia: 'O que se constrói durante o dia, à noite, desmorona'.
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