Abduzindolivros 30/05/2024
Fiquei toda a leitura chamando esse livro de ?Minha Sombrinha Vanessa?, mas perdeu a graça no final ?
Vanessa é uma adolescente solitária, com dificuldade de fazer amigos e considerada muito evoluída para sua idade. Essa é uma combinação de atributos muito perigosa, prato cheio para predadores. Seus pais jamais imaginariam, contudo, que ceder à insistência dela de frequentar um colégio interno a colocaria cara a cara com um homem adulto, o professor Jacob Strane, que transformaria a jovem brilhante em alguém muito diferente do que poderia ter sido.
É um livro muito pesadão. Mexe com traumas, é denso, é sombrio. Contudo, comparar com a violência chocante e, muitas vezes, gratuita de ?Uma Vida Pequena? seria uma injustiça. ?Minha Sombria Vanessa? é um livro necessário, não produz choque pelo choque e fala sobre a dificuldade de uma vítima de abusos de se enxergar como tal, e os efeitos que um trauma desses produz ao longo dos anos.
Vanessa é quem conta sua própria história. Começa de algum ponto do seu presente, acompanhando a denúncia que outra ex-aluna faz contra Strane, por assédio, e alterna com o que aconteceu quando tinha 14 anos e o professor, 41. O tempo todo, Vanessa afirma ? às vezes, desesperadamente ? que não se considera uma vítima, que quis o relacionamento, que sempre consentiu, que Strane a amava.
Porém, lendo a visão do passado, fica nítido o quanto o professor a manipulava, e como o fazia. Começou com elogios, jogando, tocando-a, envolvendo, um jogo de morde-e-assopra até que Vanessa cedeu de um jeito que poderia ficar parecendo que foi ela quem procurou. A partir daí, Strane distorce ainda mais as coisas e passa a jogar isso, sutilmente, contra Vanessa, responsabilizando-a junto com ele pelo ?relacionamento ilícito? de ambos.
Sempre que Strane percebia que ela poderia dar com a língua nos dentes, ele se fazia de coitado, se autodepreciando, até Vanessa sentir culpa e recuar. Constantemente, a lembrava de que ela também sofreria consequências e exposição caso ele fosse condenado e preso. Alternava com momentos de aparente carinho e cuidado. Mentia descaradamente. Distorcia e inventava fatos. A autora foi jogando cenas e diálogos mostrando o jogo dele, tudo da ótica distorcida de Vanessa, de forma que dá para entender o porquê de ela não se ver como vítima, mas sem deixar de enxergar o absurdo que Strane fazia com ela.
Como alternou entre passado e presente, não ficou cansativo. A história da Vanessa adulta, ainda lutando para acreditar que não era uma vítima e que sua história com Strane foi de amor, mostrava a mim os efeitos que o abuso teve nela. Uma mulher brilhante que foi perdida numa obsessão por um homem manipulador e criminoso, forçada a se ver como tão responsável quanto ele. Uma menina de quinze anos tem que ter a mesma maturidade emocional que um homem de mais de quarenta deveria ter para aceitar ou evitar uma situação. Ela era a 🤬 #$%!& . Ela provocou, aceitou, era madura demais para a idade. Ele foi protegido pela menina, pelas instituições, pelos colegas. Também foi protegido pela Vanessa mulher, que mal conseguia dar conta de si mesma.
Muitas cenas e diálogos do livro bateram em mim de forma pessoal. É muito difícil se enxergar como vítima. Como desatrelar toda a sua história, os seus desejos, o seu presente, as suas carências e necessidades de um abuso? Como viver consigo mesma ao se ver sendo tão frágil a ponto de ser manipulada e concordar com algo tão errado, como não se achar toda errada e monstruosa após isso? Como acreditar que tudo o que você viveu até aquele momento não passou de uma horrenda história de estupro?
Tem um momento no qual Vanessa fala que precisa acreditar que o que viveu com Strane foi amor, porque, se não foi amor, o que foi, então?
E isso é muito pesado.
Eu comparei com ?Uma Vida Pequena?, que também é um livro sobre um adulto lidando com traumas de abuso infantil, porque o que achei de gratuito e chocante no livro da Hanya Yanagihara achei de acurado em ?Minha Sombria Vanessa?. Tem, sim, cenas explícitas, mas o foco era em como a Vanessa se sentia e enxergava aqueles momentos. Mesmo com as ideias distorcidas sobre o que acontecera, através dessas cenas eu capturava o desconforto intenso da personagem. Sendo assim, por mais pesado que seja, é uma história necessária para ajudar a entender as nuances de um trauma por abuso.
A revitimização caso denuncie, a dificuldade de se enxergar como vítima, os julgamentos, a obsessão, os problemas de se relacionar, a desistência de investir no próprio futuro, problemas de autoestima e de identidade, tudo isso e abordado na história. A manipulação do abusador, também. E uma parte muito chocante de tudo isso: o quanto as instituições protegem quem comete esses crimes.
Outra coisa que me impressionou foi o quanto esse modo predatório parece tão arraigado nos homens. Strane não foi o único covarde que manipulou Vanessa para que ela ?o desejasse?. Mano, o número de vezes em que eu vivi na pele isso de o homem fazer esse joguinho de morde-e-assopra para que eu desse o primeiro passo... A maioria faz isso com o intuito de 1. Comer a mulher, dar no pé e depois dizer ?foi essa 🤬 #$%!& que quis, eu sou só um coitado? 2. Se achar no direito de usar o corpo da outra pessoa quando e como quiser, porque aí tem a cartada de transferir a culpa, ?foi ela quem deu em cima de mim?. É um jogo muito perverso que a autora ilustrou com vários personagens, em diferentes contextos e situações.
Os personagens secundários não receberam tanta atenção quanto Vanessa e Strane. São meio genéricos, contudo, serviram bem aos seus propósitos na história. Achei uma história muito bem escrita, gostei do final, gostei da narrativa, a autora sabe muito bem o que fazer. Me entregou algo que me fez pensar. Recomendo fortemente.