Jivago 04/11/2021A forma do traumaTematicamente há pouco espaço para inovações relativas a narrativas que representam a ditadura militar brasileira e suas consequências. Desaparecimento de pessoas, as histórias dos desaparecidos, as histórias de busca dos que ficaram, o imediatamente antes e o imediatamente depois da ditadura, assim como o testemunho do período histórico se desenrolando, tudo isso já foi e ainda é matéria para obras sobre o período.
Contudo, o que todas essas linhas temáticas têm em comum é uma espécie de substrato existencial que identifica o éthos narrativo e que aponta, quase sempre, para a sensação de irresolução do trauma. A ditadura parece ter acabado, ao menos oficialmente, mas a disputa em torno de seus acontecimentos, dos fatos, da verdade, nunca se esgota, e aqueles que têm a missão de buscar algum tipo de reparação histórica pelas atrocidades cometidas aos entes queridos, sejam eles familiares ou não, vêem-se sempre numa jornada cruel: não há, nos parece, nenhum amparo institucional, nenhuma predisposição oficial de reconhecimento de condutas, nunca houve de fato um acerto de contas final que julgasse e condenasse responsáveis por um dos períodos mais assombrosos da história do Brasil.
Pelo contrário, à medida que o tempo passa, mais cresce uma mentalidade relativista, negacionista e revisionista da história, sempre impulsionada por aqueles que têm vergonha de terem tomado parte no lado criminoso dessa mancha histórica e preferem resguardar-se na falácia de que agiram pela pátria: e em nome da pátria tudo era permitido, inclusive a destruição de seu próprio povo. Ao contrário do povo alemão no pós-guerra que chegaram a criar e debater conceitos como “culpa retroativa” e “justiça coletiva”, a opção brasileira foi sempre a do abafamento, do silenciamento.
Pensando nisso, é que considero “O corpo interminável” uma feliz inovação de Claudia Lage. As escolhas formais da autora traduzem com precisão esse desamparo histórico sofrido pelas vítimas da barbárie ditatorial. O livro é dividido apenas em partes, e dentro destas temos sempre transições que simulam capítulos: são recortes não nomeados que dificultam, principalmente, a identificação da voz narrativa do momento. E esse artifício, acredito eu, é crucial para veicular a sensação assombrosa de que falamos: quem lê não sabe que tipo de fala vai encontrar, nem o que aquele novo narrador poderá trazer em termos de notícias, revelações, angústias; demoramos a identificar o espaço e o tempo, ao leitor é negado transitar no solo seguro da narração linear, em verdade, a sensação de segurança é suspensa desde a abertura quanto entendemos (apenas supomos) que trata-se de alguém em estado de loucura, cárcere, ou em processo de tortura.
Com esses elementos o livro constitui-se, basicamente, na história de Daniel e Melina, um casal de jovens, tentando montar o quebra-cabeça que lhes indicará as participações de seus pais no período da ditadura. O “corpo interminável” do título é uma brincadeira que joga com a busca dos protagonistas, a busca de Daniel principalmente, tentando conhecer mais de sua mãe, de sua família, através de relatos, cartas, anotações. Há reflexões sobre trauma, memória, laços rompidos, vidas interrompidas, esperanças e incertezas em relação ao futuro, responsabilidades, etc. Todo esse conjunto é amarrado pela dor da perda, pelo abandono, pela noção latente de que a ditadura que assolou o país ainda não foi completamente passada a limpo e, nesse sentido, a narrativa funciona também como um alerta do perigo iminente da repetição de um processo que não se encerrou.