Bem-aventurados os leitores que, pela primeira vez, vão deleitar-se com essas noites traduzidas do original. E não menos felizes são os que já as conhecem, pois, como escreveu Jorge Luis Borges, "'As Mil e Uma Noites' não morreram... continuam crescendo, ou recriando-se. E o infinito tempo do livro continua o seu caminho".
O tradutor Mamede Jarouche compulsou várias versões manuscritas e impressas em árabe, e o resultado é surpreendente. Além de captar o ritmo e a melodia original, Jarouche encontrou o tom e a dicção da fala dos personagens, e enriqueceu a tradução com notas esclarecedoras que revelam um conhecimento profundo da língua árabe e da cultura oriental.
A história dos manuscritos do "Livro das Mil e Uma Noites" já é em si surpreendente. A primeira menção ao "Livro" data do século IX, mas o miolo principal foi escrito na segunda metade do século XIII, depois da invasão e devastação de Bagdá pelos mongóis. Outras histórias foram acrescentadas e incorporadas ao "Livro" no século XVIII, quando surgiu a famosa tradução francesa de Antoine Galland, a primeira no Ocidente. Desde então, o "Livro" tornou-se um dos textos mais lidos, citados e comentados do mundo.
Antes da primeira noite, o leitor sabe que o rei Sâhriyãr foi traído por sua mulher, e que está traição pode ceifar a vida de todas as mulheres do reino. Mas Sahrãzãd decide arriscar sua própria pele a fim de salvar as outras mulheres. Então, começa a contar histórias ao rei. Em cada amanhecer o relato é interrompido num momento de suspense, à espera da próxima noite. Assim, o leitor se depara com tramas ardilosas e escabrosas, cheias de fantasia e surpresa, numa geografia mutável e exuberante como num sonho ou pesadelo. O inverossímil e o inexplicável participam dessas intrigas, que a imaginação da narradora multiplica e expande até a última noite, quando se casa com o rei e salva as mulheres da degola. É esse "repertório de maravilhas" que o leitor vai encontrar nas fábulas do "Livro das Mil e Uma Noites".
Milton Hatoum
Contos / Crônicas / Fantasia