Lílian 16/04/2024
Um ped*filo, est*pr*dor e seu parça achando que podem tudo
Jack Kerouac acertou em cheio na sua intenção de transmitir, no ritmo frenético da escrita, o espírito aventureiro, acelerado e descontrolado dos beatniks. O que não quer dizer que seja uma leitura fluida, ligeira, é bom notar.
É um livro muito cansativo de ler exatamente por falar "tudo de uma vez, ao mesmo tempo, o tempo todo" e porque a vida na estrada, como qualquer outro tipo de vida, é uma repetição, a longo prazo, das mesmas coisas. Nesse caso, estrada-carona-amigos-bar-sexo-bebida-música-drogas-procurar onde dormir, dia após dia, em lugares diferentes, mas nem tão diversos assim.
Eu tive pequenas crises de ansiedade e uma espécie de aflição, que eu não soube bem a que atribuir, cada vez que eu lia "On the road" por um período prolongado de tempo. De alguma maneira, a minha mente parecia no meio de um furacão de imagens, sensações, coisas, pessoas... Foi uma das minhas piores experiências de leitura.
Eu não ter curtido é extremamente pessoal. O autor foi no alvo, ele conseguiu transmitir o que queria.
A parte realmente boa do livro são as descrições maravilhosas e poéticas de coisas simples da vida, de características de pessoas, como quando ele fala de um músico que tem "a eternidade pousada em suas longas pestanas". Especialmente, a relação deles com a música, o modo como eles sentem o jazz é algo visceral, belo e insano.
Agora a podreira. Incomodou-me terrivelmente acompanhar as viagens, em amplo sentido, desses homens brancos estadunidenses, que simplesmente podiam sair por aí vivendo la vida loca por serem homens, brancos e estadunidenses.
Munidos desses privilégios, acharam por bem meter o louco e dar vazão às suas vontades. Por que colocar freio na vida e nos prazeres, quando se goza daquele velho limite de tolerância, não é mesmo? Ser abordado e detido várias vezes por policiais sabendo que isso faz parte do charme e que um tempo depois vai seguir sua viagem tranquilo, pra fazer tudo de novo, com mais uma história pra contar, é uma garantia e tanto.
Um spoiler do grande ideal de liberdade estadunidense da época, ah, pera, é assim ainda hoje: os homens negros que estão pela estrada não parecem estar curtindo a vida adoidado, mas enlouquecidos pela vida. Ou trabalhando de modo extenuante, assim como os latinos.
Será que ao invés de estar se matando em campos de algodão, de feijão, nos portos, eles também não gostariam de sentar a bunda num carro e sair por aí cometendo pequenos e grandes delitos e registrando essas aventuras, testando todos os limites da sociedade e da vida? Durariam, talvez, até o primeiro cigarro roubado, ou a primeira investida na "mulher errada", porque o sistema não perdoaria um negro ou um latino, prisão perpétua e pena de morte estão aí pra isso.
O que dizer das "aventuras" nos quartos de hotéis com mulheres absurdamente drogadas, indefesas, no assédio a meninas de 9 anos de idade, no aliciamento de menores? Homens adultos brancos que usavam drogas porque queriam viver a experiência da vida ao extremo, inclusive o tal "amor livre". Livre pra quem? Na maior medida, apenas para eles, que tinham o luxo de escolher.
Eu nunca gostei muito de movimentos que levantam a bandeira da liberdade, mas não fazem questão de pensar e lutar por uma liberdade universal. Sempre me dá a impressão de uma revolta conveniente, por assim dizer, de "eu vou fazer o que eu bem entender porque eu posso". Não estou tentando invalidar a experiência, mas, que tem uma dose enorme de egocentrismo aí, isso tem, fora os diversos tipos de crimes envolvidos e romantizados.
No mais, eu não ignoro o contexto histórico, político e econômico da época e os anseios aos quais o movimento pretendia responder. Mas vivemos num momento em que essa romantização da história e a naturalização de determinadas coisas não cabem mais e, por isso, olhamos o que está e o que não está no texto.