virctto 10/09/2024
Diários de noites mal dormidas
Esta obra prima vampírica foi lançada em 1897 após longos sete anos de preparo do irlandês Bram Stoker. A edição que me foi emprestada, publicada em 2018 pela editora Darkside e traduzida pela professora Márcia Heloisa, talvez seja o suprassumo do tema “vampiro” que já encontrei até então, com muito material extra organizado para quem é fã e também aqueles que minimamente tiveram contato com esse assunto, onde me encaixo.
Drácula é um clássico, este é um fato comum, outro fato comum é que leitores não devem transpor valores de sua época para mídias oriundas de outro tempo, onde e quando os pensamentos divergiam ao ponto da estranheza comparados à atualidade; porém, mesmo que eu entendesse a dinâmica de comparação que meu próprio cérebro fazia ao ler linha após linha e, mais do que isso, compreendesse o quão problemático seria cair na teia do anacronismo, por muitas vezes peguei-me julgando a escrita de Bram Stoker, que não necessariamente era apenas dele, mas de um homem que nasceu no século XIX e, por consequência, pensava como um homem do século XIX. O machismo presente em praticamente toda a história é sim uma questão a ser pontuada, e não escrevo isso apenas por ser mulher e por percebê-lo como uma mulher do século XXI, mas também como uma leitora que reconhece que todo o desenrolar que Bram desenha só existe porque os personagens masculinos tomaram atitudes de exclusão de gênero – as quais, vale dizer, se evitadas, levariam a história para outro rumo.
Na verdade, todo o escopo dos personagens é questionável. Pessoas reais são cinzas, têm seus objetivos, seus medos e seus limites, como também seus ódios e paixões, preferem coisas às outras e escolhem em quem confiar e em quem não o fazer. Bram Stoker talvez tenha sido alguém que cresceu sozinho e à sombra de sua própria companhia, pois apenas a falta de contato humano explicaria porque seus personagens (tanto homens quanto mulheres) se mostram tão fracos de dúvidas internas, de temores cotidianos e de futilidade humana. São como seres de luz, dotados de pureza e bondade, tão diferentes em espécie de suas contrapartes reais, nós, pessoas do mundo, neste ano e em qualquer outro ano. Fica bastante clara a intenção do autor: enquanto os vivos são seres de Deus, puros e benfeitores, leais uns aos outros mesmo conhecendo-se em tão pouco tempo, a imoralidade, a raiva, o temor, o ódio, o desejo e a ambição caem no colo dos desmortos, em especial ao rei deles, Drácula, que, mesmo sendo um vampiro, consegue, de longe, ser o personagem mais humanizado dentro desta grande história. A introdução e o posfácio, ambos escritos por Márcia Heloisa, explicam os motivos para Bram ter escolhido essa propaganda cavalheiresca, possivelmente proposital mas muito provavelmente impercebida.
Deixando de lado os levantamentos sociais da época, ressalto que a escrita talentosa de Stoker é inegável. O clima e a ambientação fomentam, capítulo a capítulo, a atmosfera que uma leitura de horror precisa ter. O conde Drácula não é um monstro asqueroso, tampouco o galã sedutor que muitos cineastas gostaram de pintar desde os primórdios do cinema; ele é cru, é temperamental, se ofende fácil e foge quando precisa, pois, mesmo não-humano, ainda é humano. É dele o posto de interesse dessas longas 580 páginas, ficam sobre suas costas, sobre seu próprio título, o peso de todo o talento de Bram Stoker, que, mesmo tomando exemplos já existentes antes de 1897, foi o responsável por consagrar o mais famoso vampiro que teremos na história, pois, apesar de vampiros serem imortais, apenas um é eterno.
Matheus, meu querido amigo, agradeço imensamente pelo empréstimo desta obra tão rica e que inegavelmente merece o adjetivo de clássica. Aguardo sua leitura para podermos, enfim, conversar sobre Drácula.
P.S.: correspondências por cartas são muito charmosas.
De sua amiga, Vitória.