spoiler visualizarBrujo 26/09/2022
The MaddGod.
O time de grandes obras distópicas acaba de ganhar um novo integrante em minha estante: Oryx e Crake, escrito por Margaret Atwood (a escritora do famosíssimo Conto da Aia) e primeiro volume da Trilogia do MaddAddão. E posso dizer que este livro está à altura dos companheiros 1984, Fahrenheit 451 e Cântico!
Lançado no ano de 2003, Oryx e Crake narra, sob a visão do personagem Homem das Neves, um mundo completamente destruído por alguma catástrofe que matou praticamente todos os seres humanos. Nosso protagonista parece ser o responsável pela supervisão de uma nova raça: os chamados Filhos de Crake, que o vêem como uma espécie de guia.
A narrativa do livro é dividida em duas linhas temporais: o "presente" , onde acompanhamos a interação do protagonista com os Crakers e a sua busca por sobrevivência, busca por alimentos e o iminente perigo de diversas espécies de animais modificados geneticamente, como os porcões (porcos de proporções enormes e inteligência aguçada) e os lobocães.
A segunda linha temporal é contada através de flashbacks, lembranças do próprio Homem das Neves, que um dia se chamou Jimmy. Acompanhamos a sua infância, a relação delicada com seus pais cientistas e a construção da amizade com Glenn, o Crake do título. Há momentos da relação dos dois que são particularmente perturbadores: é que nesta realidade, é relativamente "normal" a existência de programas on-line exibindo todo tipo de atrocidades com a desculpa de entretenimento: esmagamento de animais, suicídios, execuções transmitidas ao vivo e pornografia infantil. E o mais assustador desses programas é o quão próximo estão do que ocorre na realidade, qualquer um que tenha ouvido falar sobre a Deep Web notará a semelhança.
Este é um traço marcante desta distopia: tudo que é descrito nela está próximo ao que acontece hoje em nosso mundo: as mudanças climáticas, o crescimento do poder econômico das empresas farmacêuticas e, principalmente, a evolução da ciência sem que haja um crescimento no mesmo nível da ética. É por essa proximidade com o nosso mundo que Margaret Atwood diz que o que foi escrito neste livro é uma Ficção Especulativa e não um sci-fi.
É importante que se diga que o ritmo de escrita da Margaret neste livro é lento (na maior parte do tempo), ela apresenta este mundo devastado e, aos poucos, vai construindo o caminho que levou à aquela catástrofe. Vai descrevendo também toda a personalidade de Jimmy, de forma profunda e com muita sensibilidade. Particularmente, eu fiquei tocado com a relação entre Jimmy e sua mãe e como a autora soube descrever a relação entre eles, os silêncios e as ausências.
Outra evolução que nós acompanhamos em detalhes, mas à distância, digamos, é a evolução de Glenn/ Crake, de jovem frio e inteligente a um brilhante geneticista, responsável pelo fim do mundo.
Crake se apresenta na maior parte da história como um personagem muito carismático: ele é inteligente, enigmático, frio e demostra um sentimento muito grande de amizade para com Jimmy. Além disso, o fato do Homem das Neves descreve-lo aos Crakers como seu Deus criador, leva o leitor a pensar (inicialmente) que ele seria uma espécie de cientista benevolente. Por isso é que me foi uma surpresa quando o personagem começou a dar sinais de pouca ou nenhuma ética, enquanto desenvolve o seu trabalho de geneticista. Aquela sociedade já trabalhava sem nenhum indício de ética, mas é como se Crake tivesse pego essa característica, essa falta de escrúpulos, e elevado à enésima potência.
Crake, em pouquíssimo tempo, torna-se responsável por uma grande empresa de engenharia genética e farmacêutica. No final do livro, nos é revelado que Crake desenvolveu uma pílula (chamada BlyssPluss) que prometia aumento da libido e da espectativa de vida, mas que na verdade continha um vírus letal aos seres humanos. Obviamente que Crake tratou de espalha-las pelo mundo, principalmente em prostíbulos. A responsável pela disseminação destas pílulas pelo mundo é a personagem Oryx, que mantinha um relacionamento duplo, com Jimmy e Crake.
Oryx, infelizmente, é a personagem menos desenvolvida dos três já citados. Mas, tendo em mente que a história contada é na verdade parte das lembranças do protagonista, faz sentido que não haja tanto desenvolvimento, pois ela sempre foi um grande mistério para Jimmy.
A origem de Oryx é triste: oriunda de algum país asiático pobre, ela foi comprada de seus pais muito jovem para, inicialmente, trabalhar para algum homem inescrupuloso para vender coisas pelas ruas junto à outras crianças mas depois acaba fazendo vídeos de pornografia. Um destes vídeos foi visto por Jimmy e Crake, que desenvolveram grande obsessão pela menina desde então. Anos depois, Crake a encontra e a contrata para trabalhar na mesma organização que ele, onde ela é a professora da nova raça de seres criada por Crake e sua equipe, além de cuidar da distribuição dos medicamentos criados.
Por volta das últimas 100 páginas ou menos se dá a eclosão da pandemia em escala global causada por Crake, que, ao que tudo indica, desde o início tinha o plano de acabar com o homo sapiens, raça defeituosa para ele, e dar início a uma raça perfeita, livre de todos os vícios e "erros" da humanidade. Jimmy, quando se dá conta de que Crake fez tudo de forma consciente e premeditada e testemunha o mesmo matar Oryx, acaba assassinando Crake. Jimmy acaba sobrevivendo pois Crake havia, anteriormente, injetado nele vacinas que o deixaram imunizado.
À partir deste trecho final do livro, as linhas temporais se encontram e testemunhamos Jimmy, agora assumindo o nome de Homem das Neves, conduzir os Crakers para o mundo fora do complexo (com o tempo, toda a parte elétrica pararia de funcionar e eles ficariam presos), contando histórias sobre Oryx e Crake, os "criadores de todas as coisas".
Aproveitando este gancho: Há críticas/ ironias relacionadas à religião de formas muito sutis em diversos pontos do livro: o nome da trilogia ser MaddAddão, a forma como o Homem Das Neves engana os filhos de Crake com histórias fantásticas e descabidas a respeito daquele mundo caótico , como os Crakers passam a venerar o Homem das Neves em determinado momento da história e, principalmente, como Jimmy descreve Crake como sendo o Deus criador daqueles seres, como uma forma de ironizar seu antigo amigo, que era avesso a todo tipo de veneração ou religião (não que ele diga isso a todo momento da narrativa, são praticamente insinuações e um ou outro comentário dentro de conversas triviais entre os dois). A própria história do livro parece ser uma mistura dos livros do apocalipse (a praga que exterminou a humanidade) e gênese (o nascimento e desenvolvimento dos filhos de Crake) da Bíblia católica, mas não chega a ser uma homenagem exatamente, ao meu ver faz parte deste perfil mais irônico que permeia toda a narrativa.
Finalizando, Oryx e Crake é um destes livros que te deixa pensativo por dias, pois há várias questões apresentadas no livro que nos deixa inquietos, questões de relacionamento entre pais e filhos, a evolução da biotecnologia sem o devido crescimento da ética e etc. Ressalto mais uma vez que a escrita de Margaret Atwood é profunda, com imensa sensibilidade e muito elegante, até poética em vários pontos.
Gostaria de destacar apenas o único ponto do livro que me desagradou, que foi o pouco desenvolvimento dos fatos que levaram à morte de Oryx.
Ah !, É legal comentar que a plataforma de streaming Hulu, a mesma responsável pela série baseada em Contos da Aia, está desenvolvendo uma série da Trilogia "MaddAddam", só não sei exatamente quando será lançada, já que sequer temos notícias sobre o elenco. Espero muito que dê certo e que seja um sucesso!!!