spoiler visualizarbarbietheking 01/03/2024
O justo pelo justo
Amei! Na verdade, estou contrariada até agora com o final, mas amei esse livro com todo meu coração (talvez até por ter me deixado nesse estado). Finalmente podemos ouvir a voz da Penélope, que vai além da esposa fiel e modesta que conhecemos na Odisseia onde, apesar de ser muito inteligente e sagaz em seus planos, também passa o poema inteiro em um lugar extremamente passivo onde suas principais atividades são chorar e dormir o sono dos deuses. Em "A Odisseia de Penélope", a vemos no seu melhor e no seu pior, continuando como a esposa devota em boa parte da narrativa, mas ganhando agora um tom mais ácido e mais maduro (afinal, a Penélope-narradora já viveu uma vida inteira e agora pode olhar para trás com outros olhos). A melhor parte desse livro, no entanto, nem é essa, mas são as escravas: as doze escravas que, em Odisseia, são enforcadas por terem "desonrado seu senhor" e se envolvido com os pretendentes. Aqui, elas compõem o coro, muito similar do que temos nas tragédias antigas, e permanecem a assombrar a narrativa de forma literal e figurativa. E não é a toa que elas cumpram esse papel típico de uma tragédia quando elas de fato viveram uma. Especialmente neste livro, esses assassinatos se tornam ainda mais pesados porque o sangue se divide nas mãos tanto de Odisseu quanto de Penélope. Afinal, é por culpa dela que as escravas tiveram o fim que tiveram aqui.
Esse livro é impecável em suas críticas, principalmente a dualidade de tratamentos tanto por causa de gênero quanto por causa da classe social. O primeiro já é intrínseco a própria Odisseia, onde temos a narração de Odisseu dormindo com duas deusas (apesar de também ser controverso) enquanto de Penélope é esperado que ela tenha se mantido fiel, mesmo que não soubesse sequer se voltaria a ver o marido. Em Odisseia de Penélope, a crítica relacionada às classes sociais é o destaque. Temos Penélope na maior parte da obra narrando as suas dificuldades enquanto mulher (que de fato eram um problema), em contraposto ao que as escravas descreviam da sua própria vida. Enquanto Penélope tenta sobreviver como uma esposa, uma nobre, uma rainha, as escravas tentam sobreviver a própria servidão, que é imposta por pessoas da classe de Penélope. Ambas sofrem por serem mulheres em uma sociedade patriarcal, mas um dos lados tem privilégios que o outro jamais alcançará. Penélope sofre sua opressão no conforto de seu Palácio, enquanto as escravas são duplamente oprimidas por serem mulheres e por estarem em um nível social inferior. Isso é exacerbado no fato de Penélope sequer falar para Odisseu que era a pedido dela que as escravas agiram daquela forma, afinal ela tem a possibilidade de se retirar da confusão. Elas, porém, pagam com a vida por terem feito como a "patroa" mandou.
Não é a toa que o livro termina como termina. O penúltimo coro das escravas é o julgamento de Odisseu pelo que fez a elas e, para a surpresa de zero pessoas, ele está prestes a ser absolvido (bem como na vida real). Quando o sistema falha com elas, que a justiça seja feita então com as próprias mãos. E assim elas não apenas invocam as Eríneas em sua defesa, mas elas próprias se tornam as Eríneas que perseguirão Odisseu até mesmo após a morte.
Aí, enfim, esse livro é perfeito. A história de Penélope é tudo e todas as camadas adicionadas a essa narrativa tornam essa uma obra rica e atemporal. Exemplo perfeito de recepção dos clássicos e uma releitura impactante de um poema que já é impactante por si só.