Che 28/02/2019
MACARTISMO E OUTRAS NEUROSES
Segundo livro do "L. A. Quartet" de James Ellroy, está à altura do primeiro, "Dália Negra". O autor manteve a atmosfera de negação ardorosa de qualquer pretensa ingenuidade da época mais glamourosa dos E.U.A. no século 20, espertamente situando tudo isso na capital cinematográfica (e portanto publicitária dessa alegada ingenuidade de 'tempos melhores), Los Angeles - a qual o escritor parece conhecer como a palma da mão e faz toda a questão de passear pelas ruas e avenidas dela num trabalho requintado de investigação do período retratado tanto no âmbito sócio-histórico quanto no geográfico.
Ellroy consegue manter o universo de "Dália Negra", inclusive com alguns personagens em comum (caso do promotor Ellis Loew), porém sem perder o fio da inventividade e lançando sua pena para outros personagens. Foi uma sacada de gênio resgatar Buzz Meeks, um sujeito que era personagem secundário (pra não dizer terciário!) no livro anterior, para alçá-lo agora à posição de um dos personagens centrais. No universo ellroyniano, quem ontem era figurante pode virar protagonista hoje. Meeks é um segurança mercenário com (quase) nenhum escrúpulo, que ecoará pela trama algumas das desventuras de seu patrão, o magnata Howard Hughes (aquele do "Aviador' do Scorsese), figura real histórica dos E.U.A. que Ellroy parece tratar com acidez especialmente entusiasmada.
Além de Meeks, Ellroy investe numa narrativa alternadamente entre mais dois personagens, o carreirista obscuro Danny Upshaw e o detetive em processo de divórcio Mal Considine, ambos com desenrolares bastante surpreendentes até o final do livro. Todos os três são personagens interessantíssimos, totalmente diferentes entre si e a investida na narração alternada em terceira pessoa não me incomodou e nem perturbou minha imersão (como achei que poderia acontecer), muito pelo contrário, o autor chega a usar esse recurso dos três personagens para mostrar informações que só algum deles descobria isoladamente, de modo que ficamos apreensivos com o que pode acontecer com aqueles que ainda não sabem de tudo.
Apesar dos três detetives densos e diversificados que nos guiam pela Los Angeles mergulhada até o pescoço na histeria macartista e num sem fim de neuroses sexuais, com direito a um vilão arrebatador (o "Texugo"), quem rouba a cena é o retrato extremamente cínico e auto-confiante da impunidade policial que atende por Dudley Smith. O irlandês nos passa a impressão de ter plena certeza de que pode fazer o que bem entende que, por ser ele mesmo da polícia, nada jamais lhe acontecerá. Esse vislumbre dele como a alma do "L A. Quartet" será intensificada no livro seguinte, "Los Angeles - Cidade Proibida", o qual já li.
Sobre a camada política de "O Grande Deserto", o possível coxinhismo de Ellroy não atrapalha em absolutamente nada, uma vez que ele se empenha mais em tirar o véu de ingenuidade de todo mundo sem poupar ninguém, muito embora talvez de modo inconsciente e involuntário acabe favorecendo justamente o lado que poderia ser seu alvo maior de acidez (os 'comunistas'), visto que o maior adepto do macartismo é o próprio Dudley e que, afinal de contas, vai se provando que muitas das suspeitas dos 'vermelhos' sobre os abusos policiais contra mexicanos e negros tinham de fato bastante fundamento.
E como se não fossem suficientes todos esses méritos, ainda tem o melhor e mais coerente final dos três livros do quarteto que li até agora, te deixando com a impressão de um mero respiro antes de uma inevitável tragédia anunciada.