Lucas 09/01/2021
Esaú e Jacó: Uma obra com o padrão sem rótulos de Machado de Assis
A literatura universal apresenta uma infinidade de símbolos que trazem uma identificação imediata ao leitor: quando se fala em Dostoiévski (1821-1881), logo se lembra de drama psicológico; Victor Hugo (1802-1885) denota romance digressivo; o nome Gabriel García Márquez (1927-2014) logo traz no leitor a sensação de nostalgia... São inúmeros os exemplos de identificações particulares que os grandes patriarcas da literatura causam de imediato.
Mas e quando se fala de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), o que prevalece? Talvez seja o realismo, que ele praticamente fundou no Brasil a partir da década de 1880... Mas o romantismo que o definiu nos seus primeiros anos de escritor (na década de 1870) não é tão facilmente ignorável assim... Este hipotético dilema está atrelado ao seu gênio: o maior escritor brasileiro de todos os tempos era multifacetado, capaz de misturar drama, romance, ironia e comicidade em seus trabalhos sem deixar rótulos unificados. Ele simboliza não um estilo ou uma sensação específica que seus escritos causam, mas uma grandiosidade que é só sua dentro da literatura nacional do Brasil.
Explicar essa grandiosidade é complicado em palavras, mas um único livro do "Bruxo do Cosme Velho" é preciso em prover esse encanto: o romance Esaú e Jacó, lançado em 1904. Seu penúltimo trabalho, e o primeiro escrito após o absolutamente eterno Dom Casmurro (1899), reúne em si todas as nuances que definiram sua obra, seja no romantismo como no realismo, que o consolidou como expoente maior.
Machado de Assis aqui trata de uma questão com alcance universal, que envolve lendas e mitologias: a rivalidade entre irmãos. O título do livro é um claro símbolo disso: Esaú e Jacó eram filhos de Isaac, e, portanto, netos de Abraão, todos eles importantes personagens do Antigo Testamento da Bíblia Sagrada (do livro de Gênesis, mais precisamente). Nas Escrituras, os irmãos brigaram (Jacó fugiu de casa e, após uma conversa com Deus, teve seu nome alterado para Israel), mas no fim da vida, reencontram-se: Esaú perdoou o irmão por ele ter recebido, em seu nome, uma bênção com a primogenitura dada pelo pai de ambos. Contudo, o título do livro simboliza de forma universal a rivalidade entre os irmãos, não possuindo apelo religioso algum.
Esaú e Jacó do título são Pedro e Paulo, filhos gêmeos de Agostinho Santos e Natividade Santos, membros da aristocracia carioca da segunda metade do século XIX. A semelhança física contrastava com as diferenças: enquanto Paulo formou-se advogado, liberal e era mais impulsivo, Pedro entra para a medicina e era mais racional, conservador e contido em termos emocionais. As brigas eram frequentes, mas não são o foco da narrativa: Machado de Assis é criativo o suficiente para abordar essa rivalidade sob ângulos diversos.
Dois elementos traduzem em cores mais vivas essa rivalidade entre Pedro e Paulo. O primeiro deles se refere à política. Os gêmeos nasceram em 1870 e eram praticamente adultos quando, em 15 de novembro de 1889 houve a Proclamação da República. Ocorre que Paulo era republicano, e essa diferença de ideais com Pedro, se não rendeu nenhuma escaramuça mais significativa quando o Império caiu, já tinha sido a razão para muitas desavenças físicas entre eles quando crianças. Outro ponto da rivalidade é Flora Batista, a protagonista feminina da história, também de família aristocrática que, como o próprio narrador sugere antecipadamente (de forma hilária), é quem vai protagonizar a rivalidade dos irmãos Santos em termos passionais. Cabe aqui um adendo acerca da construção de Flora como personagem: ela possui um viés vago em seu caráter, que não é necessariamente negativo (os famosos "olhos de cigana oblíqua e dissimulada", que descrevem a inesquecível Capitu de Dom Casmurro também podem ser adequados à Flora dentro da obra).
Basicamente, Esaú e Jacó em sua narrativa é isso: os dois irmãos brigando, na maior parte das vezes de forma inconsciente, pela atenção e aprovação de Flora. Há um mistério nisso que envolve a escolha por um deles (Pedro e Paulo se complementavam em muitos momentos, e somente Machado de Assis é capaz de fazer na literatura nacional uma análise oculta nas entrelinhas dos aspectos psicológicos de Flora nessa avaliação dos irmãos), que prende a atenção até quase as últimas páginas. No mais, o livro não apresenta grandes desdobramentos familiares desse permanente conflito, ora velado, ora exposto. Difere também de outras obras do autor no que tange ao materialismo, aos matrimônios sem amor e à hipocrisia, grandes componentes da aristocracia carioca da época e que aqui não são debatidos ou expostos de uma forma depreciativa (pelo menos não de uma forma incisiva).
O que o livro não destoa das outras grandes obras de Machado de Assis é em sua contextualização histórica. Aliás, aqui o leitor terá diante de si uma exacerbação daquilo que o autor tem de melhor, ao meu entender: a habilidade ímpar de contextualizar sua narrativa dentro da época. Machado de Assis transporta o leitor para a cidade do Rio de Janeiro do final de século XIX com uma facilidade instantânea que deve(ria) ser estudada. As "conversas" que o narrador onisciente mantém com o leitor (especialmente a leitora mais ávida por romance) trazem uma cor palpável a essa característica. Na narrativa, o símbolo dessa ambientação é o conselheiro Aires, espécie de "bon-vivant", ex-diplomata aposentado, que, tendo boas relações com as famílias dos gêmeos e de Flora, acaba se envolvendo no imbróglio que vai se criando entre os três. Aires é tão fascinante e comicamente sofisticado que o leitor acabará tendo a impressão de que o conselheiro tem mais tempo de páginas que os próprios protagonistas. As menções ao livro de memórias que ele estava escrevendo (e que correspondem ao Memorial de Aires, lançado por Machado de Assis em 1908, sua derradeira obra) trazem certas situações hilárias. O "drama" que Aires compartilha com o padeiro seu vizinho no contexto da Proclamação da República, onde se explica de uma forma genialmente metafórica os impactos posteriores desse acontecimento, sintetizam muito dessa singularidade narrativa do autor.
Este aspecto de "fascínio distanciado" que Esaú e Jacó traz em relação aos personagens e núcleo principal não são decisivos à obra em sua ficção: o desfecho possui traços de imprevisibilidade e compensa o certo marasmo com que a narrativa se desenrola em seu último terço. O fato do encanto da obra estar nas nuances, na contextualização, no pano de fundo, simboliza o sacrifício da narrativa que Machado de Assis fez para realçar o seu estilo em detrimento do enredo principal (como uma amiga leitora disse sabiamente em uma das resenhas do livro aqui postadas). Mas é interessante acompanhar esse processo, e de como ele o fez com maestria, sem causar nenhum desgaste na relação íntima e fundamental entre leitor e livro, que é a essência do prazer de ler.
Esaú e Jacó cumpre muito bem o seu papel nessa relação. De leitura breve, leve, com pitadas de drama e de cômico nas horas certas, ele corresponde a tudo aquilo que Machado de Assis tem de melhor, sendo, assim, totalmente indispensável a quem ama ler.