Coruja 31/07/2010Para ler: StardustNão sei se li um número suficiente de livros escritos por Neil Gaiman para fazer uma afirmação tão temerosa, mas aí vai: você é capaz de reconhecer um conto, romance ou roteiro dele, mesmo sem saber previamente quem é o autor, pela marca registrada de todas as suas narrativas o tom onírico, que está sempre balançando entre o sonho e o pesadelo, entre o belo e o terrível.
As histórias de Gaiman guardam, todas elas ou quase todas, porque eu posso pensar numa exceção nesse minuto e da qual vamos tratar mais adiante no texto a beleza de Faërie - a descrição que Tolkien faz das histórias de fadas se aplica completamente ao que seu patriota escreve uma beleza que é um encantamento, e um perigo sempre presente; alegrias e tristezas agudas como espadas.
Na verdade, Faërie aparece especificamente em pelo menos duas obras: é o mundo além do Muro, onde se passam as aventuras do romance Stardust e é também um reino com o qual o Sonhar mantém relações cordiais e diplomáticas a depender do ponto de vista, é caro, porque Lorde Morpheus não é lá a criatura mais diplomática do mundo... na série Sandman.
Aqui, há de se abrir um importante parênteses: quando falo em histórias de fadas, não estou falando dos contos estilo Disney de ser, ou de criaturas diminutas que se escondem por trás de lírios e gardênias. Algum outro dia voltaremos a este assunto com mais profundidade, porque é uma das minhas discussões favoritas dentro do folclore/mitologia e Tolkien trabalhou o tema de forma admirável no ensaio Sobre Histórias de Fadas - que volta e meia venho citando por aqui e que é um livro que eu mais que recomendo a todos que gostam de ficção fantástica.
Por agora, comecemos com Stardust.
Talvez muitos de vocês já conheçam, ao menos por cima, do que se trata o enredo dessa história, uma vez que ela virou filme em 2007, com Claire Danes no papel de Yvaine, além de figuras como Michelle Pfeiffer e Robert De Niro.
Stardust trata da jornada do jovem Tristan Thorn, atrás de uma Estrela. Tudo começa, na verdade, com o pai de Tristan, Dunstan Thorn, que está servindo como vigia junto à brecha do Muro, que dá nome à vila.
O Muro divide a passagem entre o nosso mundo... e Faërie. Durante anos, décadas, séculos, o bom povo da vila do Muro guardou aquela passagem, impedindo que qualquer pessoa passasse de um lado para outro, exceto por um dia, a cada nove anos, quando ocorre a Feira.
E, ao princípio do livro, chegamos exatamente a esse evento, acompanhando Dunstan enquanto ele trafega e se diverte na feira, onde conhece uma estranha garota, escrava de uma bruxa com quem ele dormindo.
Nove meses depois, um embrulho aparece surpreendentemente a sua porta... E é assim que conhecemos Tristan.
A história então dá um salto temporal encontramos Tristan com dezessete anos, apaixonado por Victoria Forster, a garota mais bonita do vilarejo. Ele a está acompanhando na caminhada até sua casa, tentando encontrar uma maneira de roubar-lhe um beijo quando os dois vêem uma estrela cadente.
A princípio, Tristan não dá maior atenção à estrela, em vez disso prometendo mundos e fundos por um beijo de Victoria: ele promete viajar ao Egito, encontrar a nascente do Nilo e nomeá-la em homenagem a ela; partir para São Francisco, para as minas e só voltar com o peso dela em ouro, viajar até a Austrália e presenteá-la com opalas... e um canguru.
Sério, ele realmente oferece um canguru em troca de um beijo e a mão da moça em casamento. Excelente idéia de dote, sem dúvida alguma...
Finalmente, o rapaz diz (numa tradução altamente mais ou menos minha...):
Beije-me, ele implorou Não há nada que eu não faria por seus beijos, nenhuma montanha que eu não escalasse, nem rio que eu não vadeasse, nem deserto que eu não cruzasse.
Ele gesticulou grandemente, indicando a vila do Muro abaixo dele, o céu noturno acima deles. Na constelação de Órion, abaixo do horizonte leste, uma estrela estremeceu, brilhou e caiu.
Por uma estrela, e sua mão em casamento, disse Tristan, grandiloqüente, Eu traria aquela estrela cadente.
Diante dessa promessa, Victoria cede se ele lhe trouxer a estrela cadente, ela se casará com ele. Só que a estrela caiu do outro lado do Muro e assim é que Tristan tenta enganar os guardiães... para então ter a ajuda do pai, que vem lembrar a todos que seu menino pertence àquele mundo que está do outro lado.
Embora Tristan não entenda essa parte, a princípio...
O que ele não esperava, contudo, em sua campanha, encontrar no lugar de uma rocha fumegante, uma garota de cabelos tão claros que eram quase brancos e que brilhava ligeiramente no escuro: Yvaine, a estrela cadente.
Obviamente que levar Yvaine para Victoria não será uma missão fácil. Para início de conversa, Yvaine não está feliz por ter sido jogada do céu para a terra; tampouco de servir de presente de casamento para uma garota humana. No meio da história, temos ainda os príncipes de Stormhold, um dos reinos de Faërie, atrás da jóia que lhes fará rei e uma Bruxa-Rainha disposta a arrancar o coração da estrela a fim de recuperar sua juventude.
Ao longo da história, Yvaine vai suavizando com Tristan, ao mesmo tempo em que o rapaz cresce porque, venhamos e convenhamos, ele era típico meninão no começo da história. Tristan amadurece muito ao longo de suas andanças por Faërie, de volta para a Vila do Muro e esse amadurecimento será primordial para o papel que assumirá mais tarde.
O filme faz uma boa adaptação da história do livro, só que ele segue um pouco mais a linha Disney de Contos-de-Fadas, com aquele final de viveram felizes para sempre. Funciona bem no filme, é engraçadinho e tudo o mais.
O livro, por seu turno, tem um final mais melancólico. Sim, os personagens são felizes, mas não para sempre. O final do livro de Stardust rende uma reflexão interessante sobre eternidade e mortalidade e, embora eu tenha simplesmente me encantado com a história, não posso negar que ao chegar às últimas linhas, ele me deixou um sabor agridoce na memória.
Curiosidade interessante: Gaiman usa como introdução ao livro um poema de Jonh Donne, chamado Vá e agarra a estrela cadente; poema esse que serve como base para a maldição de Howl no O Castelo Animado de Diana Wynne Jones.
Aí vai o poema, na tradução de Jorge de Sena:
Agarra a estrela cadente,
mandrágora vê se emprenhas,
encontra o tempo fugente,
quem ao Diabo deu as manhas,
diz-me como ouvir sereias,
não sofrer de invejas feias
e que brisa
nos avisa
dos caminhos que alma pisa.
Se é teu destino buscar
que não há quem veja ou meça,
noite e dia hás-de trotar
Até que a neve te embranqueça,
e ao voltar dirás que baste
maravilhas que passaste
e que não
viste então
uma mulher sem senão.
Se uma achaste verdadeira,
valeu-te a pena a cruzada.
Mas eu não caio na asneira
de tê-la por minha amada.
Honesta seria ainda
ao tempo da tua vinda.
Mas agora
já teve hora
de a dois ou três ser traidora.