O Gatilho

O Gatilho Tim Butcher




Resenhas - O Gatilho


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Allysson Falcon 12/12/2020

Uma lamentável farsa...
“O Gatilho”, de Tim Butcher, editado em 2014 pela portuguesa Bertrand Editora, tem a pretensão de “seguir os passos de Gavrilo Princip, o jovem sérvio bósnio que matou o Arquiduque e começou a Primeira Guerra”.

Eis mais um livro oportunista, com pretensões históricas, (mal) escrito por um jornalista, que faz os historiadores profissionais, e estudiosos mais sérios, terem calafrios.

Com a aproximação do centenário da Primeira Guerra Mundial, (1914/1918), muitos livros foram lançados, desde 2014 até hoje. Muitas destas obras se beneficiaram sobremaneira com inúmeros documentos, que ainda eram mantidos como sigilosos, e foram liberados para consulta, pela Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Áustria, Rússia, Sérvia, dentre outros países.

Graças a estudos magníficos, hoje temos uma visão muito mais translúcida de todos os acontecimentos que levaram o mundo à apocalíptica Grande Guerra.

O estopim da deflagração, em 28 de junho de 1914, o assassinato do Arquiduque Franz Ferdinand, herdeiro do Império Austro-Húngaro, e sua esposa Sophie Chotek, perpetrado em Sarajevo, capital da Bósnia, por terroristas sérvios bósnios de uma organização sérvia, foi profundamente esmiuçado e melhor compreendido.

Hoje, não resta nenhuma dúvida que o governo sérvio planejou, organizou, financiou e forneceu os meios para o crime. A organização sérvia conhecida como “Mão Negra”, ou “União ou Morte”, tinha profundas ramificações no governo e nas forças armadas sérvias. As pistolas Browning e as granadas usadas no crime vieram do arsenal do exército sérvio. Oficiais aduaneiros e policiais sérvios ajudaram os terroristas a cruzar ilegalmente a fronteira da Bósnia.

Os autores do atentado foram jovens estudantes sérvios bósnios, que se radicalizaram quando moravam em Belgrado, capital da Sérvia. Meses antes do crime todos já tinham abandonado os estudos para se dedicar exclusivamente ao grupo terrorista. Eram muito jovens, pouco esclarecidos e ingênuos. Foram usados como massa de manobra dos líderes sérvios da Mão Negra.

Os dados narrados acima são fatos históricos comprovados por dezenas, talvez centenas, de profundos e criteriosos estudos feitos por inúmeros dos maiores historiadores do planeta.

Notadamente, desde o ano 2000, surgiram trabalhos monumentais sobre a WW1, dentre os quais destaco obras de grandes historiadores, tais como: Sir Martin Gilbert, Max Hastings, David Fromkin, Christopher Clark, Ian Kershaw, John Keegan, Miranda Carter, Margareth MacMillan, Modris Eksteins, Greg King, Sue Woolmans, David Stevenson, Richard J. Evans, David Martelo, Alan Sked, dentre outros.

Muitos destes autores se debruçaram especificamente sobre as origens da guerra, a questão dos Balcãs. Como o mundo pôde cair no abismo desse conflito catastrófico por algum acontecimento na longínqua Bósnia?

O que todos esses autores concluem é que, a Sérvia, agindo através da organização terrorista Mão Negra, tentou impedir que o Arquiduque Franz Ferdinand, um reformador anunciado da monarquia dual austro-húngara, assumisse o trono e formasse uma federação de Estados dentro da monarquia, dando à Bósnia autonomia e melhores condições de vida para a população, o que fatalmente abortaria o plano de uma nação eslava reunida, sob a égide de uma Grande Sérvia. O crime covarde se deu por motivos pusilânimes.

Os jovens assassinos bósnios mataram o homem que daria autonomia ao país, que proporcionaria grandeza e dignidade à Bósnia. Mas eles eram muito estúpidos para compreenderem isso. Aliás, nos primeiros interrogatórios, as autoridades policiais não conseguiam entender a motivação do crime, perguntando ao assassino bósnio porque ele matara o homem que ajudaria a Bósnia.

Falando em estupidez, voltemos às mal traçadas linhas que Tim Butcher escreveu. Ele retrata o assassino do arquiduque, Gavrilo Princip, como um herói, um “combatente da liberdade”, um “erudito estudante e leitor ávido”, que agiu movido por sentimentos nobres de “libertar todos os eslavos do sul”. Nega o envolvimento da Sérvia, e diz que os jovens agiram por conta própria. Um monte de asneiras escritas por um mentecapto.

Entender as motivações e interesses da salada de etnias e nacionalidades que compõe a península balcânica é um exercício complicado, que requer muito estudo, milhares de páginas de leitura e ainda assim nos fica uma visão um pouco confusa.

A erosão da Iugoslávia comunista, pós queda da URSS, em 1991, deflagrou uma nova guerra nos Balcãs. No conflito sérvios, bósnios, croatas, eslovenos, montenegrinos, de ramos católicos, ortodoxos e muçulmanos, se mataram numa selvageria desenfreada, até a intervenção das forças de paz da ONU e dos USA. A matança só terminou em 1995.

O termo Iugoslávia significa eslavos do sul, mas ela só foi criada após a Segunda Guerra Mundial, sob a tutela comunista da URSS que, com mão de ferro, inventou o país. Butcher, em seu livro tresloucado, afirma categoricamente que historiadores, centenas deles, estão errados, e ele, certo. Princip agiu em defesa de todos os eslavos do sul. Esse conceito não existia no começo do século XX. Apenas a Sérvia, que havia aumentado muito seu poder e território, como grande vencedora das duas Guerras dos Balcãs, de 1912 e 1913, almejava unir toda a península balcânica, num pan-eslavismo sob controle sérvio. Ou seja, a Bósnia deixaria a futura federação de Estados dos Habsburgos para ficar sob jugo sérvio.

Confesso que foi um sacrifício concluir a leitura do livro. A vida é muito curta para lermos porcarias. Mas, até mesmo para ter um melhor embasamento para escrever essa resenha, eu tive de superar meu asco, e ler o bagulho até o fim. Não foi fácil. Algumas passagens do livro são tão absurdas que me fizeram dar boas gargalhadas. Outras me irritaram profundamente.

Butcher se mostra “surpreso” ao descobrir que, hoje na Bósnia, Princip é tido como um pária, um traidor que agiu contra seu país a favor da odiada Sérvia. Seu túmulo foi vandalizado. Ele diz “não entender os motivos pelos quais Princip não é um herói nacional”. Fico pensando se o senhor Tim não escreveu essas linhas sob efeito de “certas substâncias”, tamanho o disparate da afirmação.

Tenho, e li, todas as obras dos historiadores citados acima, sobre a Primeira Guerra Mundial, e “O Gatilho” é uma farsa muito ruim. O senhor Tim Butcher não tem a menor noção das mentiras e sandices que escreveu. Que seu lixo seja varrido para o ostracismo, ou, melhor, para o cesto de lixo da História.
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