Alane.Sthefany 07/03/2022
Matéria Escura ? Blake Crouch
Jason considera sua vida simples, tranquila e de fato feliz. Ele é um homem casado, com Daniela, o amor da sua vida, também tem um filho, chamado Charlie, que está para completar 15 anos. Ademais, é professor em uma boa universidade. No entanto, uma parte dentro de si, ainda se pergunta: como seria a sua vida, se Daniela não tivesse engravidado em uma época tão decisiva para a sua carreira, já que ele era apenas um jovem, sonhador e um físico bastante talentoso; pensando sobre como seria a vida de ambos, dele e de sua esposa.
Em uma outra realidade, totalmente diferente da dele, Jason não casou-se com Daniela e também não teve um filho, entretanto, conseguiu realizar uma das maiores descobertas científicas, provando a teoria de que existem infinitas realidades paralelas e alternativas no mesmo ponto
espaçotemporal ? em que a cada escolha que uma pessoa faz, cria-se uma bifurcação na "estrada", que leva a um mundo
totalmente diferente, uma espécie de multiverso.
E Jason descobre isso da pior forma possível: sendo roubado da sua realidade e tendo que assumir, mesmo amedrontado e confuso, o lugar de outro Jason, que ele nem imaginava existir. Agora Jason precisa descobrir a qual realidade ele pertence e quer pertencer, e lutar contra o tempo e contra ele mesmo, para voltar para a sua vida anterior, e para a sua família.
[...]
"Você é feliz com a vida que tem??
"O que você faria de diferente em sua vida?"
"Você possui algum arrependimento por ter (ou não) feito algo ?"
"Você já se arrependeu de alguma decisão/escolha durante a sua vida?"
"O que você mudaria?"
"Será que sua vida seria melhor ou pior, se você tivesse o poder em suas mãos de alterar suas decisões e escolhas tomadas desde quando nasceu?"
"Quais seriam as consequências? Estaria desposto(a) a enfrentá-las ?"
Esse livro faz você pensar sobre todas essas perguntas.
Amo livros que me fazem refletir sobre outras possibilidades, porque sempre me vem esses pensamentos: E se eu não tivesse feito isso, falado aquilo, ido naquele lugar (naquele EXATO momento), conhecido aquela pessoa, ...
É tantos "e se ..."
Que muitas vezes, chego a imaginar que as coisas seriam melhores, se não fossem as minhas escolhas irracionais, realizadas no calor do momento, em uma época de insensatez ou imaturidade, ...
Bate aquele arrependimento, e aquela vontade de voltar atrás, apagar meu caminho já traçado, e ir em outra direção, que me levaria para outras novas possibilidades.
Entretanto, essas perguntas, mesmo se tivéssemos esse domínio em nossas mãos, são infinitas, e nunca acabam por aí, só te fazem pensar no passado, em coisas que não voltam mais, e que também já não importam nesse momento que é o "AGORA".
Te fazendo ficar refém do passado, além disso, o impedindo de viver, por ficar estagnado em algo que já "não é e nem será", como o filósofo Sêneca diz:
A vida divide-se
em três períodos: o que foi, o que é, e o que há de ser. Destes, o que vivemos é breve; o
que havemos de viver, duvidoso; o que já vivemos, certo.
Dito isso, não importa como seria, se você tivesse tomado outra decisão em sua vida, seguido outro caminho ou tivesse agido de outra forma.
O importante é a sua vida de agora, com suas escolhas que o tornam quem você é HOJE.
Um pensamento do Jason, resume praticamente o que eu aprendi lendo esse livro:
"Acho que tudo se resume a querer o que não tive. Aquilo que poderia ter
tido se tivesse feito outras escolhas.
Mas a verdade é que eu fiz essas outras escolhas.
(...)
Sou apenas uma faceta de um ser infinitamente facetado chamado Jason Dessen que fez todas as escolhas possíveis e
viveu todas as vidas que se possa imaginar.
Não posso deixar de pensar que somos mais do que a soma total de nossas
escolhas e que todos os caminhos que poderíamos ter trilhado influem de algum
modo na matemática da nossa identidade.
Mas nenhum dos outros Jasons importa.
Não quero as vidas deles.
Quero a minha.
Porque, por pior que sejam as coisas, não há nenhum outro lugar no mundo
onde eu preferiria estar senão com esta Daniela e com este Charlie. Se um único
pequeno detalhe fosse diferente, eles não seriam as pessoas que eu amo."
Trechos Preferidos ?? ? ??
. ?? Spoiler ??
.
.
Para todos aqueles que já se perguntaram como teria sido sua vida
se tivessem pegado a outra estrada.
.
O que poderia ter sido e o que foi
Apontam para um único fim, sempre presente.
Passos ecoam na memória
Pelo caminho não escolhido
Rumo à porta que nunca abrimos.
? T. S. Eliot, ?Burnt Norton?
.
Aqui neste momento, feliz e ligeiramente embriagado em minha cozinha, nem
imagino que hoje à noite tudo isso acabará. Será o fim de tudo que conheço, tudo que
amo.
Não há avisos quando tudo está prestes a mudar, a ser tomado de você. Nenhum
alerta de proximidade, nenhuma placa indicando a beira do precipício. E talvez seja
isso o que torna a tragédia tão trágica. Não é apenas o que acontece, mas como
acontece: um soco que vem do nada, quando você menos espera. Não dá tempo de se
esquivar ou se proteger.
.
(..) será que vou morrer esta noite?
Caso eu sobreviva, levarei uma nova revelação pelo resto de meus dias, a de que deixamos esta vida da mesma forma como chegamos: completamente sozinhos,
despojados.
.
Naquele momento eu percebi que você não tinha aparecido para
correr atrás do tempo perdido e, sim, para se despedir. Então você começou a falar
sobre como a nossa existência é feita de escolhas e que você tinha feito algumas
escolhas erradas, mas que nenhuma tinha sido tão errada quanto abrir mão de
mim. Você disse que lamentava por tudo.
.
? Todos nós vivemos, dia após dia, totalmente alheios ao fato de que fazemos
parte de uma realidade muito maior e mais estranha do que se pode imaginar.
.
Fazia muito tempo que Daniela não via o marido tão apaixonado, tão seguro de
si.
É um Jason radiante, com a paixão pela vida reacesa.
(...)
? Pensando em quê? ? pergunta ele.
? É uma pergunta perigosa.
? Vou correr o risco.
? Estou pensando em você.
? Em quê, exatamente?
? Parece que você está tentando me levar pra cama. ? Ela ri. ? O que eu quero
dizer é que parece que você está empenhado numa conquista quando já conquistou. A
gente é casado há muito tempo, e eu sinto como se você estivesse? hum?
? Seduzindo você?
? Isso mesmo. Não me leve a mal, não estou reclamando. Longe de mim! Está
sendo incrível. Só não entendo de onde está vindo tudo isso. Você está bem? Tem
alguma coisa errada que você não quer me contar?
? Não tem nada errado.
? Então isso é tudo porque dois dias atrás você quase foi atropelado por um táxi?
? Não sei se foi a minha vida passando diante dos meus olhos ou o quê, só sei
que, quando cheguei em casa, tudo parecia diferente. Mais real. Você, principalmente.
Mesmo agora, é como se eu a estivesse vendo pela primeira vez, e vem até aquela
dorzinha nervosa no estômago. Eu penso em você a cada segundo. Penso em todas
as escolhas que trouxeram a gente até esse momento. Nós dois juntos aqui, nesse
lugar lindo. E aí eu penso em todos os possíveis incidentes que teriam impedido esse
momento de acontecer e tudo parece, sei lá?
? O quê?
? Muito frágil. ? Ele fica em silêncio por um instante, pensativo. ? É assustador
pensar que cada ideia que a gente tem, cada escolha que a gente faz se ramifica num novo mundo. Hoje, depois do jogo de beisebol, fomos ao Navy Pier, depois viemos
jantar aqui, certo? Mas isso é só uma versão do que aconteceu. Numa realidade
diferente, em vez do píer, fomos a um concerto de música clássica; em outra, ficamos
em casa. Numa terceira, sofremos um acidente fatal na Lakeshore Drive e nunca
chegamos a nenhum outro lugar.
? Mas essas outras realidades não existem concretamente.
? Na verdade, elas são tão reais quanto a que estamos vivendo agora ? diz
Jason.
? Como isso seria possível?
? É um mistério. Mas existem evidências. A maioria dos astrofísicos acredita
que a força que mantém as estrelas e as galáxias unidas, aquilo que faz todo o
universo funcionar, vem de uma substância teórica que não se pode medir nem
observar diretamente. O que eles chamam de matéria escura. E essa matéria escura
compõe a maior parte do Universo conhecido.
? Mas o que é exatamente essa matéria escura?
? Ninguém sabe ao certo. Há tempos os físicos tentam formular novas teorias
que expliquem o que é e como se originou. O que se sabe é que ela tem gravidade,
assim como a matéria comum, mas que deve ser feita de alguma coisa que ainda
desconhecemos completamente.
? Uma nova forma de matéria.
? Exato. Alguns teóricos das cordas veem nisso um indício da existência do
multiverso.
Daniela fica pensativa por alguns segundos.
? E todas essas outras realidades? onde elas estão?
? Imagine que você é um peixe, nadando num lago. Você pode ir para a frente e
para trás, para um lado e para o outro, mas nunca para fora da água. Se tiver uma
pessoa na beira do lago, olhando para você, você não vai nunca saber que essa
pessoa está ali. Para você, esse pequeno lago é o universo inteiro. Agora imagine que
esse alguém se abaixa e tira você da lagoa. E você vê: aquilo que parecia ser o
mundo inteiro é só um laguinho. Você vê outros lagos. Árvores. O céu. E percebe que
faz parte de uma realidade muito maior e muito mais misteriosa do que jamais
sonhou.
Daniela se recosta na cadeira e toma um gole de vinho.
? Então, todos esses outros milhares de lagos estão em volta da gente neste exato
momento, a gente só não consegue ver?
? Isso mesmo.
(...)
? Você acha que em algum desses outros lagos existe uma versão sua que
continuou com a pesquisa? ? pergunta ela. ? Algum Jason Dessen que seguiu em
frente com os planos que você tinha aos vinte anos, antes de a vida atrapalhar seu
caminho?
Ele sorri.
? Isso já me passou pela cabeça.
? E será que tem uma versão minha que virou uma artista famosa? Que trocou
tudo isso por aquilo?
Jason se inclina para a frente, afasta os pratos para esticar os braços sobre a mesa
e pega as mãos dela.
? Se existe um milhão de lagos lá fora ? responde ele ?, com versões de você e
de mim em vidas semelhantes e outras diferentes da nossa, nenhuma delas é melhor
do que esta, a que temos aqui e agora. Não tenho certeza maior nesse mundo.
.
Eu me sinto envergonhado, como se tivesse perdido uma corrida para um
adversário infinitamente melhor. Um homem de visão épica construiu esta caixa.
Uma versão melhor e mais inteligente de mim mesmo.
.
(...) quando olhamos para o céu à noite
e vemos estrelas cujo brilho percorreu cinquenta anos-luz para alcançar
nossos olhos. Ou quinhentos. Ou cinco bilhões. Não estamos apenas olhando
para o espaço, estamos olhando para trás no tempo.
(...) e se nossa linha de mundo for apenas uma entre um número infinito
de linhas de mundo, algumas apenas ligeiramente diferentes da vida que
conhecemos, outras drasticamente diferentes?
A interpretação dos Muitos Mundos postula que todas as realidades
possíveis existem. Que tudo que tem a possibilidade de acontecer está
acontecendo. Tudo que poderia ter ocorrido em nosso passado ocorreu, só
que em outro universo.
E se isso for verdade?
E se vivemos num espaço de probabilidades pentadimensional?
E se realmente habitamos o multiverso, mas nosso cérebro evoluiu de
modo a nos equipar com uma barreira que limita o que percebemos a um
único universo? Uma única linha de mundo? Aquela que escolhemos,
momento a momento? Faz sentido, se pararmos para pensar. Não teríamos a
capacidade cognitiva de observação simultânea de todas as realidades
possíveis.
Então, como ter acesso a esse espaço de probabilidades em 5D?
E, se tivermos acesso, aonde isso nos levará?
.
? O que você acha que aconteceu lá em cima? ? pergunta ela.
? Um supervulcão. Um asteroide. Uma guerra nuclear. Não dá para saber.
? Estamos no futuro?
? Não, a caixa só nos leva a realidades alternativas no mesmo ponto
espaçotemporal. Mas imagino que em algumas dessas realidades o mundo pareça
no futuro, caso tenham ocorrido avanços tecnológicos que não aconteceram no nosso
mundo.
.
Vamos supor que o multiverso tenha
começado com um único evento: o Big Bang. Esse é o ponto de partida, a base do
tronco da árvore mais gigantesca e mais elaborada que se pode imaginar. Com o
passar do tempo e com a matéria começando a se organizar em estrelas e planetas
em todas as permutações possíveis, brotaram galhos dessa árvore, e dos galhos
brotaram ramos, e assim por diante, até que, catorze bilhões de anos depois, meu
nascimento fez brotar um novo ramo. E, a partir desse evento, cada escolha que fiz
ou que não fiz e cada ação externa que me afetou, tudo isso deu origem a mais
ramos, até existir um número infinito de Jasons Dessens vivendo em mundos
paralelos, alguns muito parecidos com o que chamo de meu, outros
assustadoramente diferentes. Tudo que pode acontecer vai acontecer. Tudo. Quero
dizer, em algum ponto desse corredor existem versões de nós dois que não
conseguiram entrar na caixa quando você tentou me ajudar a escapar. Que estão
sendo torturadas ou já morreram.
.
Quando você escreve, concentra toda a sua atenção naquilo. É quase
impossível escrever uma coisa pensando em outra. O ato de escrever mantém as
intenções e os pensamentos organizados.
.
Penso em todas as noites em que nos sentamos nesta varanda. Bebendo. Rindo.
Jogando conversa fora com os vizinhos que passavam enquanto os postes de luz do
quarteirão se acendiam.
Neste momento, meu mundo parece muito seguro e perfeito. Agora eu vejo:
nunca dei o valor devido a todo aquele conforto. Era tão bom, e havia tantas
maneiras de desmoronar?
.
Meus olhos se enchem de lágrimas.
Mal consigo enxergar o suficiente para continuar dirigindo.
? Jason, este não é seu mundo. Aquela não era sua esposa. Você ainda pode
voltar para casa e encontrá-los.
Racionalmente, sei que ela tem razão, mas aquilo me destruiu.
Fui programado para amar e proteger aquela mulher.
.
É impossível negar a realidade de nossa impotência.
Além de um ao outro, esta caixa é a única constante que temos.
Um barco muito pequeno no meio de um oceano imenso.
É nosso abrigo.
Nossa prisão.
Nosso lar.
.
Não tem nenhum Jason Dessen que ensine física na Lakemont College nem em
outra faculdade local, mas não posso deixar de me perguntar se existo em algum
lugar por aí.
Outra cidade.
Outro país.
Talvez vivendo sob um nome diferente, com uma mulher diferente, fazendo um
trabalho diferente.
Nesse caso, se passo meus dias numa oficina mecânica, debaixo de carros
enguiçados, ou fazendo obturações num consultório de dentista em vez de dar aulas
de física para universitários, será que ainda serei o mesmo homem, no nível mais
fundamental?
E qual é esse nível?
Sem todos os acessórios de personalidade e estilo de vida, quais são os
componentes fundamentais que me fazem ser quem sou?
.
? Não sei quanto a você, mas meu antigo mundo me parece cada vez mais
fantasmagórico. Como um sonho, que perde a cor, a intensidade e a lógica quanto
mais a gente se distancia. A conexão emocional com aquilo vai desaparecendo.
? Você acha que vai conseguir esquecer completamente? ? pergunto. ? Seu
mundo?
? Sei lá. Mas acho que pode chegar um ponto em que ele não pareça mais real.
Porque não é. A única coisa real neste momento é esta cidade. Este quarto. Esta
cama. Você e eu.
.
? Daniela?
? Oi?
? Eu sinto tanto sua falta...
? Aconteceu alguma coisa, Jason?
? Nada.
? Você está estranho. Fale comigo.
? Eu estava indo para o metrô e me dei conta de uma coisa.
? O quê?
? Que não tenho dado valor ao tempo que a gente passa juntos. Saio pela porta e
já estou pensando no meu dia, na aula que eu vou dar ou no que quer que seja, e eu
só? Quando entrei no metrô, tive um momento de lucidez sobre o quanto eu te amo.
O quanto você significa para mim. Porque a gente nunca sabe.
? Nunca sabe o quê?
? Quando tudo isso pode acabar. Enfim, eu tentei ligar para você, mas meu
celular estava sem bateria.
Por um longo instante há apenas silêncio do outro lado da linha.
? Daniela?
? Estou aqui. E sinto o mesmo por você. Você sabe disso, não sabe?
Fecho os olhos, emocionado.
Pensando: eu poderia atravessar a rua agora, entrar e contar tudo a ela.
Estou tão perdido, meu amor...
Daniela se levanta e vai até a janela. Ela está usando um longo suéter cor de
creme sobre uma legging. Seu cabelo está amarrado no alto e ela segura uma caneca
do que suponho ser chá de uma loja local.
Ela embala a barriga, avolumada por um bebê que cresce ali dentro.
Charlie ganhará um irmãozinho.
Sorrio sob as lágrimas, imaginando o que ele estará achando disso.
Isso meu Charlie não teve.
? Jason, tem certeza de que está tudo bem?
? Claro.
(...)
Não quero que ela desligue. Preciso continuar ouvindo sua voz.
? Jason?
? Oi.
? Eu te amo muito.
? Eu também te amo. Você não faz ideia.
? Vejo você de noite.
Não, você verá uma versão de mim que não imagina a sorte que tem.
Ela desliga.
.
Volta para a escrivaninha.
Guardo o celular no bolso, trêmulo, meu pensamento indo nas direções mais
loucas, rumo a fantasias obscuras.
Vejo o trem em que estou indo para o trabalho descarrilar.
Meu corpo mutilado, irreconhecível.
Ou jamais encontrado.
E me vejo entrando nesta vida.
Não é exatamente a minha, mas talvez seja próxima o suficiente.
.
À noite, ainda estou sentado no banco em frente à casa que não é a minha, vendo
nossos vizinhos voltarem do trabalho e da escola.
Que milagre é ter pessoas para as quais voltar para casa todos os dias.
Ser amado.
Ser esperado.
Pensei que apreciasse cada momento, mas sentado aqui, no frio, sei que não dava
o devido valor. E como poderia ser diferente? Até tudo desabar, não fazemos ideia do
que realmente temos, de como tudo se encaixa de maneira tão precária e tão perfeita.
.
? Onde é que você estava?
Ela me mantém imprensado contra a porta.
? Fiquei o dia inteiro sentado num banco em frente à minha casa.
? O dia inteiro? Por quê?
? Não sei.
? Aquela não é a sua casa, Jason. Aquela não é a sua família.
? Eu sei disso.
? Sabe?
? Também segui Daniela e Jason quando eles saíram.
? Como assim?
? Fiquei do lado de fora do restaurante onde eles foram comer.
Fico envergonhado em dizer isso.
(...)
Depois, eles foram ao cinema. Segui os dois até lá dentro. Sentei atrás deles.
? Ai, Jason...
? Também fiz mais uma coisa idiota.
? O quê?
? Usei um pouco do nosso dinheiro para comprar um celular.
? Por que você precisou de um celular?
? Para poder ligar para Daniela e fingir ser o Jason dela.
(...)
? Pela primeira vez, acho que entendo por que o Jason que você conhece fez o que
fez comigo. Tenho tido umas ideias terríveis.
? Nossa mente não é feita para lidar com isso. Ver todas essas diferentes versões
da sua esposa? não consigo nem imaginar.
? Ele deve ter me seguido durante semanas. No trabalho. Quando saí à noite
com Daniela. Devia estar sentado naquele mesmo banco, observando a gente dentro
de casa, imaginando como seria comigo fora de cena. Sabe o que quase fiz hoje?
? O quê?
Ela parece ter medo de saber.
? Imaginei que eles guardassem a chave reserva no mesmo lugar que a gente.
Por isso, saí do cinema antes. Eu estava disposto a encontrar a chave e entrar na
casa. Queria me esconder num armário e observar a vida deles. Ver os dois
dormindo. É doentio, eu sei. E sei que provavelmente o seu Jason esteve na minha
casa várias vezes antes da noite em que finalmente reuniu coragem para roubar a
minha vida.
? Mas você não fez isso.
? Não.
? Porque é um homem decente.
? Não me sinto muito decente agora.
.
? A gente não está saindo do lugar.
? Não concordo. Pense em onde a gente começou. Você não se lembra do
primeiro mundo em que entramos, aquele com os edifícios desabando em volta da
gente?
? Perdi a conta de quantas Chicagos já visitamos.
? Estamos chegando mais perto da minha?
? Nós não estamos chegando mais perto, Jason. O mundo que você está
procurando é um grão de areia numa praia infinita.
? Isso não é verdade.
? Você viu sua esposa ser assassinada. Morrer de uma doença horrível. Não
reconhecer você. Viu sua mulher casada com outros homens. Casada com muitas
versões de você mesmo. Até quando você acha que vai aguentar antes de sofrer um
surto psicótico? Seu estado mental atual não está muito longe disso.
? Não é uma questão de aguentar ou não. Eu preciso encontrar minha Daniela.
? Sério? Era isso que você estava fazendo sentado lá o dia inteiro? Procurando
sua esposa? Olhe para mim. Temos só mais dezesseis ampolas. Estamos ficando
sem alternativas.
Minha cabeça está latejando.
Rodando.
? Jason. ? Sinto as mãos dela no meu rosto. ? Você sabe qual é a definição de
insanidade?
? Qual?
? Fazer a mesma coisa várias vezes e esperar resultados diferentes.
? Da próxima vez?
? O quê? Da próxima vez você vai encontrar sua casa? Como? Vai escrever na
caderneta de novo hoje? Isso faria alguma diferença? ? Ela pousa a mão no meu
peito. ? Seu coração está disparado. Você precisa se acalmar.
(...)
Fecho os olhos, pensando nas cinco cadernetas empilhadas na mesa de cabeceira.
Quase todas as páginas estão preenchidas com minha caligrafia, que fica cada vez
mais bizarra. Continuo pensando que, se escrever o suficiente, se for específico o bastante, talvez consiga compor uma imagem completa do meu mundo, que
finalmente me leve para casa.
Mas isso não está acontecendo.
Amanda tem razão.
Estou à procura de um grão de areia numa praia infinita.
.
Há dias em que sinto minha sanidade vacilar.
Amanda disse uma vez que seu mundo original começava a lhe parecer
fantasmagórico, e acho que sei o que ela quis dizer. Associamos a realidade ao que é
tangível ? tudo o que podemos experimentar com os sentidos. E, embora eu
continue dizendo a mim mesmo que existe uma caixa no South Side de Chicago que
pode me levar até um mundo onde eu tenho tudo o que quero e de que preciso, já não
acredito que tal lugar exista. A cada dia mais, minha realidade tem sido este mundo.
Onde não tenho nada. Onde sou um sem-teto, uma criatura imunda cuja existência
evoca unicamente compaixão, piedade e repugnância.
Aqui perto, vejo outro sem-teto em pé no meio da calçada, falando sozinho.
Penso: será que sou muito diferente dele? Não estamos nós dois perdidos em
mundos que, por razões que fogem ao nosso controle, não mais se alinham com
nossa identidade?
Os momentos mais assustadores são os que parecem estar ocorrendo com uma frequência cada vez maior.
Momentos em que a ideia de uma caixa mágica soa para mim como os delírios
de um louco.
.
Bebo quase meio litro de um uísque barato.
Então, me vejo de pé no quarto principal da casa número 44 da Eleanor Street,
olhando para Jason e Daniela adormecidos na cama sob um emaranhado de
cobertores.
O relógio na mesa de cabeceira marca 3h38, e, embora a casa esteja silenciosa,
estou tão bêbado que sinto o pulsar do meu coração nos tímpanos.
Não consigo juntar as peças do processo mental que me trouxe até aqui.
Só consigo pensar que isto era meu.
Em outros tempos.
Este belo sonho de vida.
E, neste momento, com o quarto rodando e as lágrimas escorrendo sem parar
pelo meu rosto, realmente não sei se aquela minha vida era real ou imaginária.
Dou um passo em direção ao lado que Jason ocupa na cama e meus olhos
começam a se ajustar à escuridão.
Ele dorme tranquilamente.
Desejo o que ele tem com tanta intensidade que chego a sentir o gosto na boca.
Eu faria qualquer coisa para ter a vida que ele tem. Para ocupar seu lugar.
Imagino matá-lo. Asfixiá-lo ou meter uma bala em seu crânio.
Vejo-me tentando ser ele.
Tentando aceitar esta versão de Daniela como minha esposa. Este Charlie como
meu filho.
Será que algum dia terei a sensação de que esta casa é minha?
Conseguirei dormir à noite?
Conseguirei algum dia encarar Daniela sem pensar no medo no rosto de seu
verdadeiro marido dois segundos antes de ser morto?
Não.
Não.
A clareza retorna num estrondo ? dolorosa, vergonhosa, mas no momento
exato em que é desesperadamente necessária.
A culpa e todas as pequenas diferenças transformariam minha vida aqui num inferno. Seriam um lembrete não apenas daquilo que eu fiz, como também do que
ainda não fiz.
Este jamais seria meu mundo.
Não sou capaz disso.
Não quero isso.
Não sou este homem.
Eu não deveria estar aqui.
Enquanto cambaleio para fora do quarto e atravesso o corredor, percebo que até
mesmo considerar a ideia seria o mesmo que desistir de encontrar minha Daniela.
O mesmo que dizer que a estou deixando ir embora.
Assumir que ela não é alcançável.
E talvez isso seja verdade. Talvez eu não tenha a menor chance de encontrar meu
caminho de volta para ela, para Charlie e para meu mundo perfeito. Para aquele
único grão de areia numa praia infinita.
Mas ainda tenho duas ampolas e não vou desistir até que elas se acabem.
.
O multiverso existe porque
cada escolha que a gente faz cria uma bifurcação na estrada, que leva a um mundo
diferente. Naquela noite, quando você me contou que estava grávida, não aconteceu
só do jeito que a gente lembra. Aquilo se desdobrou numa infinidade de permutações.
Em um dos mundos, este em que estamos agora, você e eu decidimos construir uma
vida juntos. Nos casamos. Tivemos Charlie. Construímos um lar. Em outro, decidi
que me tornar pai aos vinte e tantos anos não era o que eu queria. Tive medo de meu
trabalho se perder, de abandonar meus objetivos.
?Então, existe uma versão da nossa vida em que a gente não teve um filho.
Charlie. Em que você seguiu em frente com a sua arte, eu segui com a minha ciência,
e a gente acabou se separando. Essa versão de mim com quem você conviveu no
último mês? foi ele quem desenvolveu a caixa.?
? Que é uma versão maior daquela coisa em que você estava trabalhando
quando a gente se conheceu? O cubo?
? Isso mesmo. E, em algum momento do caminho, ele se deu conta de tudo de
que abriu mão quando deixou que o trabalho fosse a parte mais importante da vida
dele. E se arrependeu da escolha que fez quinze anos atrás. A caixa não pode levar
para o passado nem para o futuro, só consegue conectar todos os mundos possíveis,
no mesmo momento, no presente. Então, ele ficou procurando até encontrar meu
mundo. E trocou a minha vida pela dele.
.
? Como ela era? ? pergunta Daniela.
? Ela era você sem mim. Sem Charlie. Ela estava meio que namorando Ryan
Holder.
? Ah, pelo amor de Deus. E eu era uma artista de sucesso?
? Era.
? Você gostou da minha instalação?
? Era brilhante. Você era brilhante. Quer que eu conte mais?
? Adoraria.
Descrevo o labirinto de acrílico, o que senti ao atravessá-lo. Falo sobre as
imagens surpreendentes. O design espetacular.
Seus olhos se iluminam.
Ela parece triste.
? Você acha que eu era feliz? ? pergunta.
? Como assim?
? Depois de ter aberto mão de tudo para ser aquela mulher.
? Não sei. Foram só quarenta e oito horas que eu passei com ela. Acho que,
assim como você, como eu, como todo mundo, ela tinha arrependimentos. Acho que
às vezes acordava no meio da noite se perguntando se o caminho que seguiu foi o
certo. Com medo de que não tivesse sido. Perguntando a si mesma como teria sido
sua vida se tivesse ficado ao meu lado.
? Às vezes eu me pergunto essas coisas.
? Vi tantas versões de você? Comigo. Sem mim. Artista. Professora. Designer.
Mas, no fim das contas, tudo isso é só a vida.
.
? Não importa o que aconteça, você me terá de volta.
? Mas vai ser alguma outra versão de você. É isso o que você está me dizendo,
não é? E se ele for que nem esse babaca que arruinou nossa vida? E se ele não for
bom como você?
Desvio o olhar e contemplo o lago, tentando conter as lágrimas.
? Por que você se sacrificaria para que outra pessoa ficasse comigo?
? Todos nós vamos ter que nos sacrificar, Daniela. Esse é o único jeito de
preservar você e Charlie. Por favor. Só me deixe fazer com que a vida de vocês em
Chicago seja segura de novo.
.
Estar com Daniela não é como estar em casa.
Estar com ela define o que é estar em casa.
.
Não tem sido
assim desde que Jason2 apareceu. Você não é substituível. Nem por você mesmo.
(...)
De todas as versões
do Jason, foi você quem inventou de fazer aquela loucura no restaurante, de forçar a
própria prisão, o que fez a gente se reencontrar num lugar seguro.
? Então você está dizendo que é o destino.
Ela sorri.
? Acho que estou dizendo que encontramos um ao outro pela segunda vez.
.
? O lugar onde moramos, nossos amigos, nossos empregos? tudo isso define
quem somos.
? Isso não é tudo o que nos define. Enquanto eu estiver com você, vou saber
exatamente quem sou.
? Daniela, eu não quero nada além de estar com você, mas se eu não fizer aquilo
amanhã, você e Charlie nunca mais vão viver em paz. E, não importa o que
aconteça, você ainda terá a mim.
? Eu não quero outra versão de você. Eu quero você.
.
? Eu tinha um plano para proteger Daniela ? digo.
? É, eu li seu plano. Mas não vou me sacrificar para outra pessoa ficar com
minha esposa e meu filho. A calça jeans também.
Desabotoo a calça, pensando que cometi um erro de julgamento. Não somos
todos iguais.
? Quantos de nós você matou hoje? ? pergunto.
? Quatro. E vou matar mil, se for preciso.
.
Ele (Jason2) se volta para Daniela. ? Eu tinha tudo o que sempre
quis, menos você. E isso me assombrava. Imaginar o que poderia ter sido. Foi por
isso?
? Então você devia ter ficado comigo quinze anos atrás, quando teve a
oportunidade.
? Eu não teria construído a caixa.
? E por que isso seria tão terrível? Olhe em volta. O trabalho da sua vida teve
outro resultado além de dor?
? Cada momento, cada respiração, contém uma escolha ? diz ele. ? Mas a
vida é imperfeita. Fazemos escolhas erradas. Então, acabamos vivendo em perpétuo
arrependimento. Não existe nada pior que isso. Construí algo que realmente pode
acabar com o arrependimento. Que vai deixar você encontrar mundos onde fez a
escolha certa.
? Não é assim que funciona. Você vive e aprende com suas escolhas. Não
podemos enganar o sistema.
.
Um pensamento muito estranho me ocorre, como uma nuvem passageira de
verão.
Estamos tão claramente no fim. Tudo o que construímos ? nossa casa, nossos
trabalhos, nossos amigos, nossa vida coletiva ?, tudo isso acabou. Não temos mais
nada, exceto um ao outro, mas mesmo assim estou mais feliz do que nunca.
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Penso em todas as noites em que fiquei deitado na cama, imaginando como as
coisas poderiam ter sido diferentes caso eu não tivesse escolhido o caminho que me
tornou pai e também um professor de física medíocre, em vez de um luminar da
minha área. Acho que tudo se resume a querer o que não tive. Aquilo que poderia ter
tido se tivesse feito outras escolhas.
Mas a verdade é que eu fiz essas outras escolhas.
Porque eu não sou apenas eu.
Minha noção de identidade foi despedaçada. Sou apenas uma faceta de um ser infinitamente facetado chamado Jason Dessen que fez todas as escolhas possíveis e
viveu todas as vidas que se possa imaginar.
Não posso deixar de pensar que somos mais do que a soma total de nossas
escolhas e que todos os caminhos que poderíamos ter trilhado influem de algum
modo na matemática da nossa identidade.
Mas nenhum dos outros Jasons importa.
Não quero as vidas deles.
Quero a minha.
Porque, por pior que sejam as coisas, não há nenhum outro lugar no mundo
onde eu preferiria estar senão com esta Daniela e com este Charlie. Se um único
pequeno detalhe fosse diferente, eles não seriam as pessoas que eu amo.