Wellington 29/07/2021
A Cabana do Pai Tomás – 5,5
“O objetivo destes quadros é despertar compaixão e bons sentimentos pela raça africana” (sic). Contida no prefácio da própria autora, a passagem anuncia seu intuito e viés. Posta num contexto onde o escravo era demonizado, desumanizado, invisibilizado, etc. por todos, torna-se compreensível que Harriet tenha escolhido usar características do momento para gerar empatia no leitor. Tal esforço foi bem sucedido: proibida em lugares como o Brasil (adivinhe o porquê) e lida com voracidade nos EUA e na Europa, A Cabana do Pai Tomás desempenhou importante papel ao abrir os olhos de muita gente.
Hoje, trata-se mais de leitura histórica que revolucionária. A infantilização dos personagens e o intuito descarado de manipular a opinião de quem lê são inegáveis. Não se trata de denúncia contundente sobre o lixo que a escravidão foi num nível global, ou que esclareça quão próximo racismo é de colonialismo; mas de alguém que diz que “o africano é sensível pela sua raça” (sic)” num sentido de quão fácil e desejável seria caso todos se convertessem ao cristianismo. Tomás é retratado como heroi, e o que ele é senão a encarnação do escravo benevolente, pio, manso, inspirado em Cristo? Até parece que a escravidão é injusta só por não ser “cristã de verdade”! Ora essa.
É fácil entender como a visão de um Paraíso pode confortar alguém esmagado, como a espiritualidade pode ser o refúgio e salvação de quem nada tem. De forma alguma questiono a fé dos personagens, tampouco a fé em si. Ela tem o seu valor. Meu intuito é mostrar que a autora usou de recursos que não concordo. Há até menções cínicas sobre o Haiti, diminuindo a importância da independência do país só porque não são considerados cristãos.
Minha raiva à parte, a escrita é fácil e gostosa de ler, desde que você ignore as constantes menções bíblicas e esforços que... Ah, serei rígido mesmo. Acho alguns esforços infantis. “Não precisa se esforçar para fazer o leitor chorar; conte algo emocionante, ele chorará”; tal proposta é de Ivan Turguêniev, e Harriet faz o contrário. Tem uma cena triste? Lá vai ela escrever: “mães! Vedes a si mesmas em tais situações, vedes a injustiça de tal ato!”; ou ainda: “não choraríeis se fosse o seu filho?”. É. Falei que ia deixar a raiva de lado e não consegui. Harriet força muito as cenas e alguns personagens são esquecidos no meio do caminho (Topsy, Ophelia, Sambo, Quimbo).
Trama: há mais personagens que Tomás, inclusive com capítulos em diferentes perspectivas. Edição e revisão: impecáveis! A Carambaia caprichou no projeto; o posfácio é longo e repleto de material bibliográfico da época, para quem se interessar. Não vi nenhum erro. Ilustrações: dão cor e tom à miséria escravocrata, bem escolhidas. Senti raiva, mas gostei do livro e considero uma leitura importante; é só não vir esperando revolução, o valor é histórico.
E o Vento Levou, obra sulista que passa pano para a escravidão, faz uma menção irônica a este livro; denuncia que a "libertação dos escravos" visou mais interesses econômicos que humanos. Vendo como o mundo ainda é, tendo a concordar.
Memórias de um Caçador, livro de Turguêniev, foi apontado pela crítica como A Cabana do Pai Tomás para a servidão na Rússia. Pode ser, pelo impacto que teve na sociedade da época... Mas só. O resto é balela. Aquele livro traz servos bons e maus, gentis e rudes, “ímpios” e católicos – enfim, humanos. Já esse aqui traz só uma imagem: a do pobre escravo gentil e obediente que é impedido pelos donos de se tornar o missionário cristão que todo mundo deveria ser.
Ps: minha avó leu antes de mim e, para ela, o livro é nota 10. É uma boa obra, eu que sou chato.
Resenha disponível em:
@escritosdeicaro