Yuri 24/02/2022Quem é o Gigante que jaz enterrado? O Gigante Enterrado é o sétimo livro de Kazuo Ishiguro - autor laureado com o Nobel de Literatura em 2017. Após um hiato na produção literária de 10 anos, o autor retorna com uma proposta inédita em sua obra: se aventurar no território ilimitado da fantasia. Mas será que se trata de pura e simples fantasia mesmo? Ou o elemento mágico presente na trama funciona mais como uma alegoria, atribuindo um tom de parábola à narrativa?
A trama é ambientada em uma Inglaterra pós-arthuriana, onde a magia é parte inerente da rotina dos habitantes. Fadas, trolls, ogros, dragões e outras criaturas míticas integram o cenário tal como árvores, rios, pedras, montes e precipícios. A terra é dividida entre comunidades de bretões e saxões, que estão numa aparente trégua das guerras passadas.
Há uma misteriosa névoa que assola a região. Responsável por um esquecimento generalizado, a névoa torna a memória dos indivíduos num labirinto: só se pode entrever o passado em pequenos fragmentos embotados, confundíveis com um sonho qualquer. Nesta condição de desmemoriados, encontramos nossos protagonistas, os mais improváveis em uma obra fantástica: um pacato casal de idosos, Axl e Beatrice.
Poucos sabemos da vida pregressa desse casal, tampouco eles próprios. Lembrando-se subitamente da existência de um filho perdido, eles decidem partir à sua procura. Nesse o momento, o leitor também parte nessa caminhada por terras bravias, sem saber qual destino nos aguarda, numa singela alegoria à própria vida (ou ao final dela?). Para se lembrar do filho, é preciso que a névoa do esquecimento acabe. No entanto, será que é mesmo uma boa ideia despertar memórias silenciadas? Qual é a real importância que as memórias (ou a falta delas) têm nas nossas vidas? Será que a verdade vai permanecer sendo verdade após a volta da memória? Quais cicatrizes o gigante que estava tão profundamente enterrado irá suscitar quando se reerguer?
O Gigante Enterrado é um livro denso. Engana-se quem se contenta apenas com a superfície. O romance é repleto de camadas, metáforas e espelhos. A magia está presente tão somente para ilustrar e tornar mais fácil as discussões sobre a natureza humana e, sobretudo, sobre as relações humanas. A jornada do herói aqui não é necessariamente a superação de um obstáculo hercúleo, afinal aqui a jornada já se inicia perdida, frustrada, é o final da vida. Antes a caminhada se faz dentro dos personagens, totalmente intimista, é o olhar para dentro, da névoa interior, em busca de uma resposta urgente agora que falta tão pouco tempo para o fim da linha.
A memória e a morte talvez sejam os maiores temas aqui, não obstante o livro não se esgota e consegue abranger diversos outros temas: amor, velhice, hipocrisia, guerras, xenofobia, intolerância religiosa e cultural. Todos esses elementos alinhados e conduzidos por uma escrita lenta, poética, melancólica e, principalmente, contemplativa. Não raro o leitor vai se perceber preenchido por uma nostalgia nada bem definida, como uma névoa.
Gostei muito do livro e recomendo. Não é uma leitura que vá agradar a todos, especialmente àqueles leitores mais costumeiros de fantasia que possam adentrar esta obra já com certas expectativas. No entanto, vale a pena se debruçar sobre esse quebra-cabeça incrível que o autor criou e perceber suas próprias memórias encaixando-se uma às outras, paulatinamente formando um fio narrativo.