Luis 08/03/2015
A trilha sonora do palco iluminado
Começo a escrever essa resenha na terça feira do carnaval de 2015. Os jornais exaltam as atrações e surpresas que extasiaram o público presente às duas noites de desfile do grupo especial na Marquês de Sapucaí. Falam de fantasias, alegorias, artistas famosos, camarotes, musas, enfim, quase tudo que entra na receita do auto proclamado “maior espetáculo a céu aberto” do planeta. Para quem lê essas matérias e não sabe exatamente o que é o carnaval, talvez não atente para o detalhe de que se trata de uma festa essencialmente musical. Não por acaso, o samba, outrora componente mor dos quatro dias de folia, tem sido relegado a segundo plano. Não há uma linha sobre o que foi cantado na maratona do sambódromo.
Nesse contexto, o lançamento de “Enredo do Meu Samba” (Record, 2015) é um bálsamo que serve, antes de qualquer coisa, para resgatar o protagonista desses quatro dias de alegria.
Intencionalmente ou não, o autor, Marcelo de Mello, jornalista e jurado do prestigiado Prêmio Estandarte de Ouro, ao usar o subtítulo “ A história de quinze sambas-enredo imortais”, se livra das naturais sais justas que acompanham as obras que se baseiam em listas extremamente pessoais. Não se trata de uma escolha entre os maiores, os melhores ou os mais importantes sambas já cantados pelas escolas cariocas, muito embora, a maior parte dos escolhidos se encaixaria em qualquer uma dessas categorias. Na verdade, trata-se do resgate de histórias que, tendo como pano de fundo músicas que ultrapassaram o limite da quarta feira de cinzas, tornaram-se parte essencial do arquivo momesco. Em suma, Marcelo usa esses quinze sambas para registrar parte significativa da memória do carnaval do Rio.
O livro é organizado cronologicamente, iniciando-se com “Aquarela Brasileira”, de Silas de Oliveira, muito provavelmente o maior compositor do gênero, e que ajudou o Império Serrano a levar o campeonato de 1964, ainda no tempo dos desfiles da Presidente Vargas. Aqui cabe uma observação que reforça o caráter do livro de não se ser um greatest hits da avenida. Oficialmente, as disputas de escolas de samba começaram em 1928 organizadas pela imprensa, na mítica Praça Onze. Logo, claro está que, em termos de qualidade e como marcos históricos há sambas pré-1964 que poderiam muito bem também ser retratados na obra. Para ficar em só um deles, podemos citar o próprio Império Serrano, que, em 1949, foi vencedora com “Exaltação à Tiradentes”, composta por Mano Décio da Viola, Estanisláu Silva e Penteado. O samba, segundo consta foi o primeiro a ser gravado em disco ( o álbum oficial com os temas das escolas só teve a sua primeira edição em 1968), em 1955 por Roberto Silva, mas ficou famoso mesmo pela regravação de Elis Regina, que imortalizou os versos “Joaquim José da Silva Xavier, morreu a 21 de abril, pela independência do Brasil...” Embora a explicação não conste do livro, está nas entrelinhas que esse sentido de “permanência” foi o guia de Mello na escolha dos samba abordados. Iniciar com “Aquarela Brasileira” é simbólico pelo fato de ter sido uma das primeiras composições a ter o status de clássico, algo que não aconteceu de imediato, mas somente 11 anos depois, pelo estrondoso sucesso da regravação de Martinho da Vila em seu “Maravilha de Cenário”.
Outro aspecto interessante é notar que há um balanceamento entre as escolas abordadas, embora algumas sejam citadas mais de uma vez (Império e Salgueiro), nota-se a preocupação de se incluir o maior número de agremiações possíveis, mesmo á custa do corte de outros sambas imortais. Mais uma vez recorro ao Império Serrano, que ainda na década de 60, emplacaria mais duas obras primas : “Os Cinco bailes da História do Rio” (1965), notável por ter entre os seus autores (junto com Bacalhau e Silas de Oliveira) a primeiro mulher a fazer parte de uma ala de compositores, D. Ivone Lara e “Heróis da Liberdade” (1969), que para muita gente foi o maior samba enredo da história. O autor ? O Imbatível Silas. Em nome do equilíbrio, esses sambas não estão entre os 15.
Causa também estranheza a ausência de “O Mundo Encantado de Monteiro Lobato”, tema da Mangueira de 1967, e que é citado em quase todas as antologias sobre o assunto. Gravado por Eliana Pittman no mesmo ano, a composição estourou em todo o Brasil e foi o estopim para o lançamento do disco oficial, a partir do ano seguinte. A Mangueira é representada no livro pela inclusão de “E Deu a Louca no Barroco”, de 1990. Lobato seria muito mais representativo.
Mas a verdade é que os acertos de “Enredo do meu samba” são muito mais numerosos que os equívocos. Mello conta o ponto de inflexão que mudou para sempre o gênero, o fantástico “Festa para um Rei Negro”, do Salgueiro, em 1971, que com o seu irresistível refrão (“Õ Lelê, Ô Lalá, Pega no banzê, Pega no ganzá) praticamente impôs uma nova era ao tipo de música que acompanhava os desfiles. O samba, composto por Zuzuca inspirado no canto das lavadeiras, entre as quais a sua mãe, se tornou eterno antes mesmo de vencer a disputa da escola, pois ainda nas fases eliminatórias começou a ser tocado nos bailes do Bola Preta. Em poucas semanas, o Rio inteiro cantava o refrão. Jogo ganho antes de entrar em campo.
Outro destaque é a surpreendente trajetória de “Os Sertôes” (Em Cima da Hora, 1976), um dos mais bonitos e tristes já cantados na avenida. Assinado por Edeor de Paula, foi a trilha de um desfile desastroso que levou a escola ao rebaixamento. Mesmo assim, e talvez até por conta disso, é outro campeão de audiência em qualquer roda que se preze. O autor , com estupenda sensibilidade, conta em detalhes todo o clima que cercou a improvável escolha do samba, classificado após a desistência de um dos concorrentes, pressionado pelo staff da escola que apoiava majoritariamente uma outra composição. De Patinho feio, “Os Sertões” se transformou em cisne, ainda que um cisne triste. Só esse relato já vale o livro.
A obra passeia ainda pelos grandes momentos da União da Ilha. É hoje, de 1982, é o escolhido, mas Mello não deixa de citar a polêmica em torno do mítico “O Amanhâ”, de 1978, que segundo alguns não foi assinado pelo verdadeiro autor, Didi, que compôs “É Hoje” e tem seu perfil único como um trunfo do volume.
Marcelo de Mello segue encandeando história fascinantes e, de certo ponto desconhecidas, de verdadeiros hinos, como “O Teu cabelo não nega (só da Lalá)” (Imperatriz, 1981); “ Bum bum praticumbum prugurundum” (Império Serrano, 1982), “ Ziriguidum 2001” (Mocidade, 1985); “E por falar em saudade...” (Caprichosos, 1985), “Kizomba” (Vila, 1988) e “ Liberdade, liberdade” (Imperatriz, 1989).
O livro fecha com “Explode Coração” (Salgueiro, 1993), o último a ultrapassar os limites do carnaval, lançado há mais de 20 anos, o que é sintomático do atual nível da produção musical das escolas.
Ler o “Enredo do meu samba” pode ser uma fonte de inspiração para renovar o gênero sem deixar de lado a tradição, afinal, como bem disse o mestre Ismael Silva, citado magistralmente pelo Império em 82, “Bum bum praticumbum prugurundum, o nosso samba, minha gente, é isso aí”.