spoiler visualizarvicente 17/09/2018
Mais uma vez a literatura prova que tamanho passa longe de ser documento
Esse pequeno livro é certamente das minhas melhores leituras recentes. Mas não se engane pelo tamanho, achando que será uma leitura rápida. Bem, talvez o seja, mas a realidade é que a leitura exige atenção plena e muitas vezes a releitura de trechos para compreensão total.
Quando se fala de primeiras frases poderosas, impossível esquecer de:
"Associo, com ou sem razão, o meu casamento à morte do meu pai, em outros
tempos"
Eixo fulcral pro desenrolar da narrativa, ainda que aparentemente esquecido em dada hora. No início da obra, parece apenas um tratado onde um narrador divaga sobre os fatos e questões da vida, nesse contexto, a maneira de narrar que nos acompanhará até o final, serve perfeitamente.
Frases, lindas frases, potentes, cheias de conteúdo e muitas vezes contendo em si, discussões filosóficas de alto nível, tratando de existência, morte e amor. Muitas delas chegaram a tocar-me tanto que me senti compelido a pausar a leitura e para anotá-las. Sou obrigado, portanto, a destacar uma ou duas delas:
"O que me interessava, a mim, rei sem súditos, aquilo que de a disposição de minha carcaça era apenas o mais remoto e fútil dos reflexos, era a supinação cerebral, o embotamento da ideia do eu e da ideia desse pequeno resíduo de futilidades peçonhentas que chamavam não-eu, e mesmo de mundo, por preguiça."
"É penoso não ser você, ainda mais penoso do que sê-lo"
"Sempre falei, sempre falarei de coisas que nunca existiram, ou que existiram, se quiserem, e que provavelmente existirão, mas não com a existência que atribuo a elas"
Ainda sobre o molde de construir frases, a extensão delas, a enumeração dos tópicos, adjetivos, devaneios, o uso das vírgulas, eventualmente retornando ao sentido inicial, remete a maneira de pensar, ou até o falar de alguém cuja cabeça ebule. Muitas vezes, por instância, em frases longas, palavras ou expressões são repetidas até 3 vezes. Chega ao caso de o narrador encerrar uma frase dizendo, separado do resto da frase por uma vírgula: "essa frase já durou demais".
Nesse sentido, também, nesta curta obra, o narrador-personagem assume sem pestanejar a perspectiva essencialmente parcial de eu-lírico, em momento algum tentando observar os fatos com neutralidade. E não só isso, mas também declaradamente ao leitor, alterando detalhes da narrativa visando uma história que contemplasse mais seu gosto, esteticamente, pelo menos naquele momento. Observamos isto quando, por exemplo, o nome da personagem com quem o eu-lírico desenvolve sua peculiar relação amorosa, é casualmente alterado, de Lulu para Anne, sob a mera justificativa da vontade daquele que nos conta esse relato. Ou em outro momento quando se lê: "Digamos que chovia, para variar um pouco". Por ser então uma narrativa notoriamente pessoal, a factibilidade dos fatos apresentados e a veracidade da curva que a história faz, fica aberto para a interpretação do leitor, recurso que, não raro, é utilizado por escritores, como o saudoso Moacyr Scliar, em "O Centauro no Jardim" (fica aqui a recomendação).
Em certo momento a divagação diminui, e começa-se a narrar uma sequência de acontecimentos, uma história, que de forma alguma está desconexa dos devaneios quase dostoieviskianos do começo, falando agora desse primeiro amor que o eu-lírico vivencia, mantendo a irônia e o humor ácido. Assumindo que todos que leem tanto a obra quanto essa resenha, já amaram alguma vez, todos se lembram de seu primeiro amor, seja essa memória positiva ou negativa. E talvez muitos tenham tido esse primeiro amor ainda na juventude, e provavelmente vão concordar se eu disser que, nesse sentido, o amor do eu-lírico com Anne é juvenil. Juvenil como que dois imaturos que se amam, e portanto, por mais que se amassem, tinha dificuldades tremendas em lidar com o outro. Seus encontros eram marcados por estranheza e seus diálogos, pouco ortodoxos, pouca ou nenhuma demonstração de carinho, em certos casos até uma desvontade de se encontrar, como se fosse tortuoso ou incômodo, ainda que o narrador nos diga que a ama, e diz ser recíproco esse amor.
Se falta algo nessa relação amorosa, sem dúvida é o tesão. É ao ver a querida nua pela 1ª vez, o narrador percebe que ela é vesga. Conversando à sua maneira no telhado, a moça se despe, e o narrador reage aquilo de maneira indiferente, e responde, ao ser inquirido se ele não iria despir-se, que "raramente se despe", fazendo-a trajar-se novamente e pedindo que ele pelo menos tirasse o chapéu. Vai dormir a casa da namorada, mas parece que em nenhum momento ele pensa em ter relações sexuais com ela, enquanto se preocupa com seu quarto e sobre como ele está cheio de móveis inúteis. Após re-organizar o cômodo, preocupa-se com o penico ou bacia, caso a natureza lhe ocorresse durante a noite. Diz ao leitor que aqui, já deitado, só e de roupas, começava a deixar de amá-la, e que isto era bom, tranquilizante. Vira-se para dormir, claro, e ouve ruídos, vira-se e sorri para Anne que pega a lamparina e volta para seu quarto. Ao ouvir sua porta bater o narrador se vê enfim só e dorme, acreditando "ter partido para uma boa noite de sono, apesar da estranheza do lugar. Mas não, minha noite foi extremamente agitada. Acordei no dia seguinte quebrado, minhas roupas em desordem, a cama também, e Anne do meu lado, nua naturalmente, O que ela deve ter se desgastado! Eu continuava com o
caldeirão na mão. Olhei dentro. Não tinha me servido dele. Olhei para meu sexo.
Se ao menos ele soubesse falar. Não entrarei em detalhes. Essa foi a minha noite
de amor."
Após essa promissora noite de amor, o narrador passa a habitar a estranha casa, ja des-amando Anne, em suas palavras. E a vida foi "se organizando", como diz ele. Passava os dias em seu quarto, só, ela o alimentava regularmente. Tudo corria bem para o eu-lírico. Exceto ruídos - gemidos e risadinhas - que ele ouvia e o incomodavam profundamente. "Eu nem pensava em Anne, nem um pouco, mas tinha, assim mesmo, a necessidade de silêncio, para viver a minha vida"
E continua
"Levei muito tempo, a vida toda por assim dizer, para
compreender que a cor de um olho entrevisto ou a origem de algum ruído
distante estão mais perto da Giudecca, no inferno das ignorâncias, do que a
existência de Deus, ou a gênese do protoplasma, ou nossa própria existência, e
exigem mais da sabedoria, que fique longe. É um pouco demais, toda uma vida,
para chegar a essa conclusão consoladora, não nos sobra tempo para aproveitar."
E descobre então que Anne era prostituta. Ele questiona: "Você vive de prostituição? Nós vivemos de prostituição, ela respondeu. Você não
pode pedir que eles façam menos barulho?, disse eu, como se acreditasse no que
ela acabava de dizer. Acrescentei, Ou outro tipo de barulho? Eles não podem
deixar de ganir, disse ela. Serei obrigado a ir embora, disse eu"
Anne chega a engravidar, e ele a questionar sua gravidez. A criança supostamente o amarraria ao casamento, ela tampa suas janelas, mas ele veste-se e sai, mesmo sendo gritado. E assim que Samuel Beckett encerra essa pequena maravilha, o eu-lírico, saindo, relembrando as Ursas e seu pai, cuja morte ele associava ao seu casamento, e brincando com os gritos, que ele acreditou que iriam parar, mas não pararam, talvez tivessem sido necessários outros amores.
Mas amores não se encomendam.