Alan Santiago 22/12/2009
Shangri-Lá continua intacta
Fosse um chinês o criador de Shangri-Lá certamente esse mítico paraíso terreno, escondido em algum lugar do Tibete, não teria tintas tão francamente ocidentais. E, talvez também não tivesse animado tantos espíritos das bandas de cá do globo, desde 1933 quando foi lançado Horizonte Perdido, a embarcar na ideia de uma sociedade erigida sob o julgo benevolente da paz e da sabedoria, apartada do nosso mundo de prazos e horários, voltada para o que há de mais interior no ser humano.
Virou instantaneamente um best-seller. Ainda mais porque o inglês James Hilton teve a felicidade de parir as 248 páginas do romance no momento certo da História: o mundo passava pela maior crise capitalista até então e via emergir, inerte, o nazi-fascismo na Europa - as bases necessárias para eclodir a Segunda Guerra três anos mais tarde. Shangri-Lá convertia-se, assim, em alternativa inevitável para um Ocidente prestes a explodir.
Mas, para ser palatável a esse gosto particular, acabou ganhando padres franceses, alunos de Chopin e nativos dedicados ao estudo da cultura europeia. "Como veem, somos menos bárbaros do que esperavam", diz Tchang, um dos lamas do mosteiro que recepciona os forasteiros, trazidos até Shangri-Lá após terem seu avião sequestrado. Com o tempo, a barbárie de menos deixa de ser simplesmente porque o mosteiro, mesmo a milhares de quilômetros dos grandes centros, tem tantas e tão boas acomodações que impressionam os recém-chegados. Na verdade, a própria lógica de Shangri-Lá é de uma civilidade ocidentalizada, baseada na mediania aristotélica e na dominação das paixões. Não é à toa que o vilarejo tenha adquirido as feições que tem no momento da narrativa pelas mãos de um cristão - não sem a ajuda de budistas.
Acredita-se que o fabuloso romance de Hilton seja uma deturpação ficcional, muito bem urdida, dos textos do expedicionário Joseph Rock, publicados na década de 1930 na revista National Geographic sobre a mesma região chinesa onde supostamente transcorre a ação do livro. A descrição de Rock da montanha Konkaling lembra em muitos pontos o Karakal encantado de Shangri-Lá. Ou quem sabe a inspiração tenha vindo do monte Kawakarpo, de onde ele também pinçou a colonização de padres franceses. Certamente, o mais impressionate vem das semelhanças com o mosteiro de Muli, igualmente dirigido por um governo teocrático, distante do mundo moderno, cujo governante teve encontros reiterados com Rock - como o cônsul inglês Conway, em Shangri-Lá, tem com o Lama Superior.
Mas, se é certo que Shangri-Lá está inteiramente compreendida pela ótica particular do europeu branco e colonizador, é igualmente verdade que Hilton conseguiu enfeixar num único lugar mítico, com vigor, precisão e astúcia, um poço das projeções do Ocidente por encontrar na vida terrena um ambiente possível de paz, tranquilidade e sabedoria, onde o tempo não é mais fruto de preocupações, mas, ao contrário, encarado com serenidade. É ideia fascinante que atravessou o século XX incólume ao tempo. E não dá mostras de esgotamento. Aos desbravadores, resta o aviso: as estradas do Tibete estão abertas. Muli continua intacta. Shangri-Lá também.