Alan Martins 11/11/2018
Escrevendo com ironia, humor e crítica
Título: Um homem bom é difícil de encontrar e outras histórias
Autor: Flannery O’Connor
Editora: Nova Fronteira
Ano: 2018
Páginas: 224
Tradução: Leonardo Fróes
“’Nada é mais como era’, disse ele. ‘O mundo está ficando podre’.” (O’CONNOR, Flannery. A vida que você salva pode ser a sua. In: Um homem bom é difícil de encontrar e outras histórias. Nova Fronteira, 2018, p. 50)
Nessa coletânea de contos o leitor conhecerá paisagens e situações comuns à região Sul dos Estados Unidos, um local marcado pela pobreza, pelo cenário rural, pela religião e por costumes característicos. Flannery O’Connor foi uma das autoras que melhor retratou o Sul estadunidense em suas obras, e fez isso com muito humor e ironia.
Carreira interrompida
Mary Flannery O’Connor nasceu em 1925, na cidade de Milledgeville, Georgia. É considerada, ao lado de Erskine Caldwell e William Faulkner, um dos maiores nomes de um gênero literário conhecido por “gótico sulista”, pois são autores que retratam a realidade da região Sul dos Estados Unidos em suas obras.
Graduou-se em Ciências Sociais pelo Georgia State College for Women em 1945. Trabalhou para algumas revistas e jornais antes de iniciar sua carreira literária. Sua primeira obra publicada foi um romance, intitulado ‘Wise Blood’, de 1952. Apesar de ter iniciado com um romance, O’Connor ficou conhecida por seus contos. Sua carreira foi bem curta, pois a autora faleceu prematuramente, em 1964, por conta de complicações provocadas pelo lúpus, doença que também tirou a vida de seu pai.
Em vida, teve três obras publicadas. Uma reunião de todos os seus contos foi publicada, de maneira póstuma, em 1971, livro que acabou vencendo o National Book Award for Fiction de 1972.
“’Ninguém mais pensa’, lamentou-se Mr. Jerger’.” In: Um golpe de sorte, p. 69
Paisagens sulistas
Essa coletânea reúne dez contos, que não são longos, com exceção do último, ‘O Refugiado de Guerra’. São contos com cenários sulistas, como o Alabama, ou a Geórgia, estado onde O’Connor nasceu e cresceu.
A autora era uma católica devota, e sua fé aparece em seus contos, mas não de uma forma onde a fé é imposta, porém em detalhes, como alegorias bíblicas, ou até mesmo em críticas, pois vemos que algumas de suas personagens sofrem consequências ou agem de maneira preconceituosa por causa de uma fé fora de controle.
Quem já leu alguma obra de Faulkner, ou o grande clássico ‘O Sol é para todos’, encontrará cenários e questões semelhantes em ‘Um homem bom é difícil de encontrar e outras histórias’. Levando em conta a época da autora, no estopim da segregação racial nos EUA, vemos que ela estava à frente de seu tempo, colocando no papel situações comuns daquilo que era visto ao seu redor e refletindo sobre tudo, de forma irônica e humorada.
“Mr. Head lhe poderia ter dito que ter idade é uma bênção e que só com o passar dos anos o homem alcança a tranquila compreensão de vida que o torna um guia apropriado aos mais jovens.” In: O negro artificial, p. 91
Ironia e humor
São duas características presentes nesse livro. Ao olhar para o sumário, o leitor verá alguns títulos bonitinhos, que até parecem histórias de amor. Todavia, não passam da mais pura ironia. E isso é legal, pois pensamos se tratar de uma coisa e acabamos sendo surpreendidos por outra, totalmente diferente do imaginado. É preciso ter em mente que a autora, após ser diagnosticada com lúpus, passou anos vivendo à espera da morte, já que em sua época não havia um tratamento eficaz e adequado para essa doença. Por isso muitos de seus contos parecem pessimistas, mórbidos; esse era o estado de espírito de O’Connor, que acabou utilizando a ironia para “fazer pouco caso” da morte.
Muitas de suas personagens são ingênuas e se colocam em situações de risco, ao serem enganadas por charlatões, por gente que só quer passar a perna nos outros (e quantas dessas pessoas não existem por aí!). A linguagem utilizada é simples, nada rebuscada, buscando trazer a simplicidade do Sul dos EUA, região que apresenta um dos maiores índices de pobreza do país.
Buscando uma comparação com um autor nacional, por conta dos cenários rurais, de toda simplicidade do campo, podemos dizer que os contos desse livro se assemelham um pouco às estórias de ‘Primeiras estórias’, de Guimarães Rosa. Claro, cada um apresenta o ruralismo de seu próprio país, de uma região em específico, com ambos retratando cenários da infância e etc., entretanto, as duas obras transmitem uma sensação bastante parecida. Não são idênticas — longe disso —, mas há semelhanças.
“As pessoas certamente não são mais tão gentis como já foram.” In: Um homem bom e difícil de encontrar, p. 16
Sobre a edição
Edição que faz parte da coleção ‘Clássicos de Ouro’, da Editora Nova Fronteira. Capa dura, miolo em papel Pólen Soft (ou semelhante, não é especificado), boa diagramação. Só achei que o design da capa não ficou muito bom, a imagem utilizada não transmite a ideia do livro.
Tradução feita pelo poeta Leonardo Fróes. Um excelente trabalho, com boas adaptações, um texto bastante fluído. Essa tradução é a mesma de ‘Contos completos’, publicada pela falida Editora Cosac Naify. Não sei se a Nova Fronteira adquiriu os direitos de tradução de todos os contos do livro da Cosac Naify. Se esse for o caso, a Nova Fronteira resolveu publicar os contos em edições separadas, e não todos reunidos em um único volume.
“Saindo de casa é que a gente descobria mais coisas.” In: O rio, p. 35
Conclusão
Coletânea de contos muito boa. Nota-se nesse livro que Flannery O’Connor tinha tudo para fazer muito sucesso, se tornar um dos maiores nomes da literatura estadunidense. Porém, para a infelicidade de todos, uma doença tirou sua vida, de forma precoce. Em seus contos, temos a oportunidade de obter um gostinho da genialidade dessa autora, que utilizava a ironia de forma magistral. São contos que, muitas vezes, apresentam situações chocantes, onde o mal às vezes vence, o que não é fácil de engolir. O’Connor caracterizou muito bem a região Sul de seu país, um lugar marcado pelo racismo, pela pobreza, pelas paisagens rurais e pela religião, que fez parte de sua vida. A influência do catolicismo na vida da autora fica evidente em seus contos, e ela soube utilizar muito bem essa sua característica, que também acaba por contribuir com toda a ironia que nos é apresentada. Garanto que você vai se surpreender com esses contos, e acabará se encantando com todo o humor e ironia de Flannery O’Connor.
“’Estamos todos perdidos’, disse então, ‘mas alguns de nós, os que não têm mais vendas nos olhos, veem que não há nada o que ver. E isso é uma espécie de salvação’.” In: Gente boa da roça, p. 167
Minha nota (de 0 a 5): 4
Alan Martins
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