Luiz Pereira Júnior 30/05/2020
A vida criada e a vida inventada
Às vezes, é impossível diferenciar o que é biografia e o que romance, o que foi uma vida vivida e o que foi uma vida inventada. E nisso, por vezes, reside o grande mérito e o alto valor que podem alcançar uma obra literária.
Esse é o caso da bela obra “De amor e trevas”, uma mistura impressionante de realidade e ficção. O livro é pleno do como-é-ser judeu, mas sem cair nos louvores incessantes ou na reclamação eterna. É verdade que algumas cenas se repetem e que, a partir de certo momento, parece que você já leu um determinado parágrafo ou um determinado trecho em algum outro lugar do livro. No entanto, não considero isso um demérito, pois não tive, em momento algum, a sensação (terrível quando se trata de ler um livro) de estar perdendo meu tempo.
Alguns trechos podem parecer estranhos para quem não tem intimidade com a história e/ou com os costumes do povo judeu, mas nisso também reside o mérito de uma obra literária: faz-nos conhecer mais do mundo, e não apenas olhar para nosso próprio umbigo e se limitar à realidade que vemos, ouvimos ou sentimos.
A violência da guerra e a violência do ser humano contra os seus semelhantes e, ainda mais chocante, contra os seus próprios familiares é uma das tônicas do livro. A guerra existe não apenas entre povos, mas também dentro da família (valem ser mencionadas as chocantes cenas da surra de tapas de mão aberta que o patriarca inflige na menina que vê seu irmãozinho se machucar por culpa do menino-protagonista e os chocantes e várias vezes repetidos tapas que o menino-protagonista toma do pai, do avô e do tio, que foram, compreensivelmente, cortados do filme).
Cada leitor terá o seu ponto de maior profundidade na leitura, mas acredito que a todos chamará a atenção (não digo levar às lágrimas, pois isso pode soar um tanto piegas, algo que essa obra não o é) a descrição rápida, objetiva, afiada como uma navalha da morte do pai do protagonista e a descrição lenta, digressiva, onírica da morte da mãe, morte essa que permeia toda a narrativa do livro, sendo uma espécie de tema que se repete ao longo de toda a sinfonia que é o romance.
Caso você decida ver o filme, tudo bem, mas veja-o depois de ler o livro, de preferência. Apesar de não concordar com as muitas críticas sobre o filme (que é lento, arrastado, monótono...), é visível que o foco tomado é apenas o da mãe (a guerra permeia muitas das cenas principais, mas não é a chave da trama do filme – afinal, não é um filme de guerra vindo um livro, que, por sua vez, também não é um livro apenas sobre ela). No filme, merece destaque a terrivelmente bela cena do pesadelo materno (uma bela música em meio aos abismos do deserto tornou ainda mais palpável o sofrimento materno).
De amor e de trevas, assim nossas vidas são feitas. Mas há de se reconhecer que, se para muitos o amor parece ter faltado, as trevas, por sua vez, sempre deram um jeito, de uma forma ou de outra, seja dentro seja fora de nós, de se entranhar em nossas existências...