Lucas Rabêlo 19/05/2024
Na Ilíada, o ressentido é o herói
O poeta, ao solicitar à deusa o auxílio para cantar os feitos e os malfeitos dos gregos e troianos que se digladiaram na mítica Guerra de Tróia, teceu os fios de um novelo - contínuo ao de sua Penélope -, do qual seríamos, milênios depois, ainda refratários: em poesia e prosa; na intrigante, violenta e influente metodologia da criatividade humana, versada através da literatura ocidental, herdeira da Ilíada, de um ou muitos Homeros, a pedra de toque desse panorama vasto, que encontra nos livros sua definição, na escrita, sua forma poética.
Estruturado em 24 cantos, Homero vagueia ao longo dos 15 mil versos pela acrópole e pelas praias de Ílio, território hostil aos argivos e companhia, morada dos rivais troianos do reino de Príamo, este, pai do agente responsável pelo exaustivo evento que serve de mote causal para os dez anos de confronto, especulados no texto da epopeia - em que apenas o último ano é revisado.
Quando Helena é raptada por Páris, Menelau, o esposo aguerrido e rei de Lacedemônia, conjura em companhia de Agamêmnon, seu irmão, o comando do trânsito da extensa frota de homens e aliados ao cerco, que ora resvalará contra as muralhas de Tróia, quanto sobre as naus dos gregos, a depender do time que ataque e de qual esteja em vantagem, incongruentes durante toda a trama. O grande herói, e talvez o mais complexo da peça, seja Aquiles, colérico e pandêmico, que avultará no embate épico quando Pátroclo, seu estimado companheiro, é morto por Heitor, irmão de Páris, que por sua vez, terá ceifada a vida diante da ira de Aquiles de pés velozes no emblemático canto 16. Se disperso da irracionalidade, sobra culpa para Aquiles, invenção esta da fatalidade.
No eixo da mimese, enquanto campo da possibilidade, o virtuosismo empregado pelo poema se dará no insuflar da moral de grande parte do elenco. Ainda que os episódios demonstrem figuras passíveis de falhas, o sentido último buscado no decorrer da trama engrandece os atos em uma gênese do heroísmo, no lugar de esquadrinhá-los ou perscrutá-los; por exemplo, caso matem um oponente lendário, ou sejam gerados como semi-deuses, ao modo de Aquiles, maior será a ode a sua pessoa. Porém, Homero não incapacita o leitor e espetaculariza o que são, simplesmente vencedores ou vencidos, humilhados na vitória já sem nexo ou na sua perda total.
O imaginário ortodoxo difundido por Homero e Hesíodo na sociedade arcaica de outrora, que precedeu ao clássico na Grécia Antiga, diz respeito à origem e difusão do panteão olímpico na cultura, os deuses desordenados e intricados à imagem de seus filhos humanos. Do alto das nuvens, e por terra, influem nas ações dos combatentes, se compadecendo e, principalmente, tramando e competindo entre si. Zeus, Atena, Ares, Afrodite, Poseidon, Hera, divisam preferidos e condenam os preteridos à categoria de inimigos, dispondo o palanque da carnificina como um tabuleiro estratégico de suas vontades. Seres mágicos, enriquecem a trama e denotam que serem cindidos não é um predicado exclusivo dos homens. Curioso também é imaginá-los como evocações de fé, que até mesmo o cristianismo usualmente formata em ídolos: referenciais para seus convertidos; o teísmo da antiguidade grega, a religião do Destino, já não se impõe como modus operandi, subtraído a um modelo pagão de comportamento erradicado.
Diferente de Ulisses na “Odisseia”, que vagante por espaços diversos na sua volta para casa fez da Grécia um mundo, Aquiles e os demais personagens da Ilíada subsistem num único local, mas com força suficiente para ditar as histórias de aventura, fantasia, psicológicas e vindouras. Homero continua atual, permanece ouvido; seu nome é adjetivo do que é grandioso, não apenas como um tradicional artista oral, mas como aquele que atesta e funda, ainda que enraizado em mitos, a resistência frente à barbárie, as contradições entre a grandeza e a infâmia da guerra.