Filipe Tasbiat 01/05/2024
Há que ter fé em Jane Eyre
Jane Eyre é rigorosa, constante e fiel aos seus princípios do início ao fim. Assim, nos três atos que apresenta em sua autobiografia ? a infância com a tia que a maltratava e seus dias no internato de Lowood; seu tempo como preceptora da jovem Adèle na mansão do sr. Rochester; e sua nova e tranquila vida em Moor House, onde conhece seus primos, entre eles o missionário St. John Rivers ?, Charlotte Brontë constrói uma personagem sólida, madura, consistente. Mas flores brotam até mesmo no concreto.
De passagens tremendamente góticas, num castelo obscuro, gelosias iluminadas por sombrias tempestades, muros cobertos de heras e trepadeiras e ruínas de uma castanheira rachada ao meio por um relâmpago, "Jane Eyre" também passeia por campos verdejantes, banquetes de primavera e longas e inteligentes conversas ao pé da lareira.
O epílogo, para mim, é dispensável, muda o tom da narrativa, reduz a finalidade das personagens femininas ao casamento e à religião de forma tão simplista que parece ter sido escrito não por Charlotte Brontë, mas por um editor conservador de um jornaleco de novelinhas do século 19, destoando muito de todo o desenvolvimento progressista de Jane ? progressista, não liberal nem revolucionário, pois Jane é intelectualmente a frente de seu tempo, mas tais posicionamentos permanecem no campo do pensamento, de reflexões silenciosas; ela não demonstra reação, por exemplo, aos corriqueiros comentários de seus pretendentes sobre sua inteligência e sua eloquência: qualidades de um homem.
É compreensível que Jane aceite tais "elogios" sem questioná-los, dada a época em que transcorrem os eventos. São incômodos entretanto, que vêm permitindo à obra manter-se atual e lida por quase dois séculos, e possibilitando aquilo que há de mais valioso na boa literatura, o estímulo à reflexão: sobre gênero, religião, amor, beleza, costumes, classe social, certo e errado.
Se tenho fé em Jane Eyre, como tenho em todos os bons personagens, é porque ela, mesmo ao perder a fé naqueles que lhe eram próximos ou caros, em nenhum momento perdeu a fé em si mesma, a fé que guiaria todos os seus princípios e escolhas. É impossível não se afeiçoar a uma personagem assim.