Cesar270 11/08/2023
ÉTICA ESTOICA
Por que a filosofia? Aprender a morrer
Da vida humana, a duração é um ponto; a substância, um fluxo; a sensação, apagada; a composição de todo o corpo, putrescível; a alma, inquieta; a fortuna, imprevisível; a fama, incerta. Numa palavra, tudo que é do corpo é um rio; o que é da alma, sonho e névoa; a vida, uma guerra, um desterro; a fama póstuma, olvido. O que, pois, pode servir-nos de guia? Só e única a Filosofia. Consiste ela em guardar o espírito (daimon) de um homem livre de insolências e danos, mais forte que os prazeres e mágoas, nada fazendo sem um propósito, nem com engano e dissimulação, nem precisando que outrem faça ou deixe de fazer algo, aceitando, ainda, todos os acontecimentos e quinhões que lhe tocam, como vindos dali, seja lá onde for, donde vem ele próprio; sobretudo, aguardando de boa mente a morte, qual mera dissolução dos elementos de que se compõe cada um dos viventes. Se os elementos mesmos nada têm a recear da contínua transformação de cada um em outro, por que havemos de temer a transformação e dissolução do todo? Ela é conforme com a natureza e não existe nenhum mal conforme com a natureza (Meditações, II, 17).
Para que a filosofia? Impedir a tirania
Cuidado para não te cesarizares, para não te impregnares, pois é o que costuma acontecer. Preserva-te simples, bom, puro, grave, natural, amigo da justiça, piedoso, benévolo, amigável, resoluto a agir como convém. Luta por permaneceres tal qual a Filosofia te quis fazer. Respeita os deuses, socorre os homens. A vida é breve; fruto único da existência sobre a terra são os sentimentos santos e a prática do bem comum (Meditações, VI, 30).
Sobre a morte e a simultaneidade do tempo
Mesmo se houveres de viver três mil anos ou dez mil vezes esse tempo, lembra-te de que ninguém perde outra vida senão aquela que está vivendo, nem vive outra senão a que perde. Assim, a mais longa e a mais curta vêm a dar no mesmo. O presente é o mesmo para todos; o perdido, portanto, é igual e assim o que se está perdendo se revela infinitamente pequeno. De fato, não podemos perder o passado nem o futuro; como nos poderiam tirar o que não temos? Lembra-te, pois, sempre destas duas máximas: primeira, que tudo, desde todo o sempre, tem o mesmo aspecto e se renova em ciclos; nenhuma diferença faz verem-se os mesmos fatos por cem anos ou por duzentos, ou eternamente; segunda, que a perda é igual tanto para o de vida mais longa como para quem morre cedo, porquanto o presente é a única coisa de que será desapossado, pois só tem este e não perde o que não tem (Meditações, II, 14).
O conhecimento
— autonomia da razão
Propriedades da alma racional: vê a si mesma, analisa a si mesma, molda-se como quer, colhe ela própria os frutos que produz — pois os frutos das plantas e produtos análogos dos animais são outros que colhem —, alcança seu próprio fim, chegue quando chegar o termo da vida. Não é como na dança ou no teatro, onde a ação fica inteira inacabada quando interrompida; em cada parte de sua vida e em qualquer no ponto em for apreendida, a alma perfaz, completo e acabado, o seu propósito, podendo dizer: Recolho o que é meu (Meditações, XI, 1).
— o conhecimento do eterno retorno
Mais que isso, percorre o mundo todo, o vazio circundante e sua forma, estende-se ao infinito do tempo, abarca o retorno de todas as coisas, considera todos os aspectos e verifica que nada de novo verão nossos pósteros nem viram nada mais notável nossos predecessores, mas de certo modo, por menos inteligência que tenha, o homem maduro acaba por ver de alguma maneira o que foi e o que será sob forma semelhante (Meditações, XI, 1).
— identidade entre reta razão e justiça
Próprios da alma racional são também o amor do próximo, a veracidade e o pudor, a crença de que nada há de mais preciso do que ela — o que é o traço próprio também da lei. Assim, pois, nenhuma diferença há entre a razão reta e a regra da justiça (Meditações, XI, 1).
— conhecimento e ataraxía
Os princípios vivem. Como, aliás, poderiam morrer sem se extinguirem as ideias que a eles correspondem? Depende de ti reavivar incessantemente as chamas destas. Eu posso formar ideias sobre o que é necessário; se posso, por que me perturbar? O que há fora de meu intelecto absolutamente não existe em relação ao meu intelecto. Aprende esse princípio e estás de pé (Meditações, VII, 2).
O sábio
— o que distingue o sábio do ignorante e do vicioso
Corpo, alma, mente. Do corpo são as sensações; da alma, os instintos; da mente, os princípios. Receber impressões na imaginação pertence também aos brutos; ser titereado pelos instintos pertence também às feras, aos andróginos, aos Fálaris, aos Neros; o guiar-se pela mente no que se afigura o dever pertence também aos que não creem nos deuses, aos que renegam a pátria e aos que praticam sodomia quando fecham as portas. Se, pois, tudo mais temos em comum com os seres sobreditos, ao bom resta a prerrogativa de amar e de bem acolher os acontecimentos urdidos na trama do destino; não envolver nem perturbar na multidão de ideias o daimon alojado dentro do peito, mas preservá-lo propício, na obediência disciplinada à divindade, sem proferir palavra contrária à verdade, sem praticar ato contrário à justiça (Meditações, III, 18).
— a ataraxía
Três são os elementos de que és constituído: o corpo, o alento, a mente. Os dois primeiros são teus na medida em que te compete cuidar deles; só o terceiro é teu na acepção da palavra. Se removeres de ti, isto é, de teu pensamento, tudo quanto fazem ou dizem os outros, ou fizeste ou disseste tu mesmo, tudo quanto, como futuro, te perturba, tudo quanto trazes quer no corpo que te envolve, quer no alento unido a ti por natureza, não dependente de teu arbítrio, bem como tudo quanto revolve o turbilhão exterior em seu giro, para que, liberta das contingências de sua sorte, a faculdade inteligente viva pura, desligada e recolhida em si, praticando a justiça, acolhendo os acontecimentos e dizendo a verdade — se, digo, removeres daquele guia o que as paixões lhe pegaram e, do tempo, o porvir e o passado; se fizeres de ti, no dizer de Empédocles, uma esfera perfeita, ufana da estabilidade a girar, e cuidares de viver apenas o que estás vivendo, ou seja, o presente, poderás passar o tempo que resta até a morte de maneira calma, benevolente e favorável ao teu daimon (Meditações, XII, 3).
Kosmópolis
Se a inteligência nos é comum, também é comum a razão, em virtude da qual somos racionais; posto isso, a razão determinadora do que devemos ou não devemos fazer é comum; posto isso, a lei também é comum; posto isso, somos cidadãos; posto isso, o mundo é como uma cidade. Com efeito, de que outro corpo político se dirá que todo o gênero humano participa? Daí, dessa cidade comum, deriva nossa inteligência, nossa razão, nossa lei (Meditações, IV, 4). Todas as coisas estão entretecidas; seus laços são sagrados, e, a bem dizer, não há uma estranha a outra; estão coordenadas e, juntas, compõem a ordem do próprio mundo. O mundo é único, composto de todas as coisas; única a divindade, disseminada por todas as coisas; única a substância; única a lei; comum a razão de todos os viventes inteligentes; única a verdade, posto que única a perfeição dos seres da mesma espécie e dos viventes que compartilham a mesma razão (Meditações, VII, 9).
A virtude contra a fortuna
Ser como o promontório onde se quebram incessantemente as ondas; ele queda-se ereto e os estos da maré vêm morrer em seu redor. “Infeliz de mim, que tal me aconteceu!” Nada disso e sim: “Feliz de mim, porque, tendo-me isso acontecido, continuo a salvo do sofrimento, sem que me fira o presente nem me atemorize o futuro”. O mesmo podia suceder a qualquer, mas nem todos o suportariam sem sofrimento. Então, por que o acontecimento seria uma desgraça mais do que a ausência de pena uma felicidade? Chamas de infortúnio o que não é um malogro da natureza humana? Consideras malogro da natureza do homem aquilo que não contraria os desígnios da sua natureza? Mas como? Aprendeste quais os desígnios. Esse acontecimento te impede de ser justo, magnânimo, temperante, prudente, ponderado, leal, discreto, livre, virtudes de cuja reunião colhe a natureza humana o que é seu? Isto não é uma desgraça, mas uma graça suportá-lo nobremente (Meditações, IV, 49).
Aceitar o destino
Tal como se diz: Asclépio prescreveu a fulano a equitação, ou banhos frios, ou andar descalço, assim se diz: A natureza prescreveu a sicrano uma doença, um aleijão, uma perda ou infortúnio semelhante. Naquele caso, prescreveu significa: ordenou isto a fulano como adequado ao seu estado de saúde; neste, o que acontece a cada um lhe foi ordenado como adequado ao seu destino. Assim é que dizemos que um fato calhou, como das pedras de cantaria dizem os pedreiros que calharam bem nos muros e nas pirâmides, quando se ajustam entre si em tal ou qual colocação. Em suma, há uma só harmonia e como o mundo se inteira de todos os corpos num tão grande corpo, assim também o destino se inteira de todas as causas numa tão grande causa. [...] Aceitemos, portanto, os acontecimentos como os tratamentos que Asclépio prescrevia; nestes há, sem dúvida, muito de desagradável, mas acatamo-los pela esperança da cura. Considera algo como a tua saúde o acabamento e perfeição dos decretos da natureza comum e saúda como tal todo acontecimento, ainda quando pareça um tanto árduo, porque conduz à saúde do mundo, ao bom andamento e bom êxito de Zeus (Meditações, V, 8).
Deves conformar-te com o que te acontece, por duas razões: primeira, porque foi feito para ti, prescrito para ti e se relacionava contigo desde o alto, na urdidura das causas mais veneráveis; segunda, porque o que acontece a cada um em particular assegura a quem rege o conjunto o bom andamento, a perfeição e, por Zeus!, a própria coexistência (Meditações, V, 8).