spoiler visualizarBolena 30/04/2021
Até onde o ser humano pode chegar?
"Matar tutsis ... Nunca pensei nisso quando vivíamos em harmonia de vizinhança. Mesmo xingar ou trocar palavras duras não parecia certo para mim. Mas quando todos começaram a sacar seus facões ao mesmo tempo, eu também o fiz, sem demora."
"Matar é muito desanimador se você mesmo deve decidir fazê-lo, até mesmo para um animal. Mas se você tem que obedecer às ordens das autoridades, se você foi devidamente preparado, se você se sente empurrado e puxado, se você vê que a matança será total e sem consequências desastrosas para você, você se sente tranqüilo e tranqüilo. Você vai embora sem mais preocupações."
Temporada dos Fações é um livro que é impossível de esquecer. Sempre que penso nesse livro, e já pensei muitas vezes desde que terminei de ler, a primeira coisa que sempre me lembro é a total falta de empatia por parte dos assassinos. Muitos contam da época das matanças aparentando saudade, como se lembrando dos bons e velhos tempos, quando matavam, depois faziam enormes festas comendo carne das vacas dos tutsis e com os saques das casas dos tutsis todos estavam ricos e vivendo em muita fartura.
Parece surreal a ideia de não sentir culpa após matar idosos, bebês e crianças, homens e mulheres que conviveram a vida inteira juntos, vizinhos e que muita das vezes frequentavam a mesma igreja.
Durante várias vezes durante a leitura eu pensei na questão de criação de personagem. Se fosse uma história fictícia, tenho certeza que leitores iriam dizer nas críticas que Pio, Ignace, Pancrace, entre outros, eram personagens ruins, hoje em dia as pessoas gostam de pessoas em tons de cinza.
"Durante as mortes, não considerei mais nada em particular nos tutsis, exceto que a pessoa tinha de ser eliminada. Quero deixar claro que desde o primeiro cavalheiro que matei até o último, não lamentei por nenhum."
Se fosse ficção iria pensar que a autora criou um personagem caricato, desejando que fosse odiado, por isso ele tem falas como essa... mas na vida real as pessoas são horríveis nesse ponto.
"Ainda assim, se eu tivesse que escolher a faceta mais impressionante da personalidade dos homens em exibição, não seria seu desapego calmo, mas seu egocentrismo, quase igualmente avassalador em todos eles, às vezes simplesmente inacreditável.os assassinos se preocupam apenas com seus próprios destinos e, essencialmente, não sentem compaixão por ninguém além de si mesmos.
Alguns deles, avaliando os resultados catastróficos daquele episódio sangrento, catalogam seus efeitos em seu futuro arruinado. Quando abordamos o tema do arrependimento, nenhum deles menciona espontaneamente as vítimas. Eles pensam nas vítimas, mas só depois: sua reação instintiva é pensar em suas próprias perdas e sofrimentos pessoais." - Jean Hatzfeld, autor.
"No final daquela temporada nos pântanos, ficamos muito desapontados por termos fracassado. Estávamos desanimados com o que íamos perder e realmente assustados com o infortúnio e a vingança que nos alcançavam. Mas, no fundo, não estávamos cansados ??de nada." -Alphonse, assassino.
Abaixo eu algumas das coisas que mais me marcaram durante a leitura:
1- Toda comunidade participou.
O autor centra sua pesquisa em um grupo de amigos que participaram do genocídio em Nyamata. Nesse local, cinco, em cada seis tutsis foram assassinados. A participação era obrigatória para todos os homens. Eles deveriam se reunir no campo de futebol, todos os dias as seis horas da manhã, portando seus fações. É absurdo pensar como toda comunidade participou disso e em Nyamata não há relatos de desobediência civil ou alguém que tenha protestado ou se recusado a participar.
2- Naturalidade
Os assassinos que foram entrevistados por Jean Hatzfeld, autor da obra, falam com naturalidade sobre os crimes cometidos. Em algumas partes eu sentia vontade de gritar "Por favor, demonstre alguma compaixão ou remorso pelo que você fez!!" Mas não, descreviam o dia-a-dia da caça, caça de outros seres humanos com a mesma naturalidade de quem conta sobre uma ida ao shopping.
"Um genocídio - isso parece extraordinário para alguém que chega depois, como você, mas para alguém que se confundiu com as grandes palavras dos intimidadores e os gritos alegres de seus colegas, parecia uma atividade normal."
3- Apenas homens comuns - o dia-a-dia do genocídio.
O livro é feito através de entrevista com um grupo de amigos. Antes da guerra eram homens comuns: iam para o bar beber juntos, jogavam futebol, trabalhavam na fazenda, cuidavam de suas famílias, alguns até participavam do coro da igreja.
"Alguns criminosos afirmam que nos transformamos em animais selvagens, que ficamos cegos pela ferocidade, que enterramos nossa civilização sob galhos e é por isso que não conseguimos encontrar as palavras certas para falar direito sobre isso.
Esse é um truque para desviar a verdade. Posso dizer o seguinte: fora dos pântanos, nossas vidas pareciam bastante normais. Cantávamos nos caminhos, bebíamos Primus ou urwagwa, tínhamos escolha em meio à abundância. Conversamos sobre nossa boa sorte, ensaboamos nossas manchas de sangue na bacia e nossos narizes desfrutaram dos aromas de panelas cheias. Regozijamo-nos com a nova vida que começava com um banquete de perna de vitela. Estávamos com calor à noite em cima de nossas esposas e repreendíamos nossos filhos desordeiros. Apesar de não estarmos mais dispostos a sentir pena, ainda éramos ávidos por bons sentimentos.
Os dias todos pareciam muito parecidos, como eu disse a vocês. Colocamos nossas roupas de campo. Trocamos mexericos no cabaré, apostamos em nossas vítimas, falamos zombeteiramente de garotas cortadas, brigamos tolamente por grãos saqueados. Afiamos nossas ferramentas em pedras de amolar. Trocamos histórias sobre tutsis desesperados, zombamos de todos os ?Mercy!? gritados por alguém que tinha sido caçado, nós contamos e escondemos nossos bens.
Nós cuidamos de todos os tipos de negócios humanos sem nenhuma preocupação no mundo - desde que nos concentrássemos em matar durante o dia, naturalmente."
4- Motivação
De início os assassinos contam como se tivessem decidido matar de uma hora para outra e que nunca antes isso havia passado pela mente deles. Isso não é verdade!
Desde a década de 60 os tutsis foram expulsos de suas casas, perseguidos e diversos massacres aconteceram, uma vez chegando a 400 o número de mortos.
Todos os partidos políticos hutus tinham o extermínio dos tutsis como pauta. Nos rádios havia uma campanha de ódio, que clamava pelo extermínio das baratas. Os tutsis se tornaram a causa de todos os problemas do país, o inimigo que deveria ser derrotado. O genocídio foi planejado pelo governo em todos os detalhes.
Os assassinos dão alguns motivos para o que fizeram:
Teve quem disse que inicialmente se sentiu ameaçado pela milícia. Teve quem foi coagido para salvar a vida da esposa tutsi, mas a maioria afirma que a motivação foi financeira.
Após cada dia de matança eles saiam para os saques das casas dos tutsis mortos. Os assassinos afirmaram que essa época todos estavam ricos. Também cobiçavam os terrenos dos tutsis, que seriam repartidos entre eles. A lógica era: quanto mais matava, melhor o terreno recebido.
Acredito que a motivação financeira foi o motivo de muitos, mas talvez nem mesmo da maioria.
As mortes foram muito cruéis: pessoas enterradas vivas, crianças sendo queimadas vivas, mulheres grávidas que tinham suas barrigas abertas, fetos arrancados e eram estripadas, pessoas que tinham seus braços e pernas cortados e eram deixados para morrer agonizando de dor enquanto sofriam hemorragia... isso sem falar nos estupros coletivos. Isso não parece fruto de apenas uma cobiça por terreno, mas vindo também do mais profundo ódio. Os assassinos não apenas matavam e saqueavam as coisas de valor financeiro, mas itens sentimentais também. Sobreviventes que voltaram para suas antigas casas contam sobre álbuns de fotografias que foram queimados. O desejo era de destruir, aniquilar de todas as formas possíveis.
Acredito que se a motivação fosse apenas financeira as mortes seriam mais rápidas, mas faziam questão de torturar antes de matar.
Algo curioso foi que nenhum assassino entrevistado confessou ter torturado, sempre viram alguém fazendo isso ou ouviram falar.
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No geral, a grande questão é: como pessoas comuns foram capazes de tanta ferocidade? Será que as pessoas que convivem conosco, amigos, colegas de trabalho, vizinhos e até familiares também seriam capazes de nos matar se recebessem uma ordem do governo e promessas de grandes recompensas por isso?
Gostamos de pensar que não, mas temos um exemplo histórico que mostra que tudo é possível, se os organizadores motivarem da maneira "correta", seja através de discursos de ódio, desumanização e incentivos financeiros.
Ainda mais difícil é vasculhar o próprio coração e se perguntar: será que eu seria capaz de fazer algo assim com outra pessoa? Será que eu poderia estar no lugar desses assassinos? O que mais disseram foi sobre um trabalho que prometia altos ganhos, nenhuma punição. Assim como todo mundo, gosto de pensar que jamais seria capaz de fazer isso, preferia morrer antes de matar um semelhante, mas também penso que muitos homens comuns que participaram disso, assim como todas as mães de família tão dedicadas e que participaram dos saques, também deveriam pensar isso alguns anos antes de tudo acontecer. Ter consciência disso é assustador.
"Nossa obrigação, e é uma obrigação, é buscar o que os seres humanos são capazes de fazer uns aos outros, não espontaneamente (crimes dessa ordem nunca são espontâneos), mas quando mobilizados para pensar em outros seres humanos - pessoas que foram seus amigos de escola, vizinhos, colegas de trabalho e paroquianos - como não sendo seres humanos, e quando organizados e direcionados para a tarefa de massacre. A questão não é julgamento. É compreensão. Fazer um esforço para entender o que aconteceu em Ruanda é uma tarefa dolorosa da qual não temos o direito de fugir - faz parte de ser um adulto moral. Todos deveriam ler o livro de Hatzfeld."
- Susan Cotag, tradutora