Henrique DM 23/04/2024
Gostaria que fosse mais uma resenha de ficção...
Eu gostaria de estar fazendo a resenha de mais um livro de ficção. Não pela qualidade ou preferência pessoal. Eu gosto do tema abordado pelo Marcel, e o livro é muito profundo, necessário e bem escrito. Mas eu gostaria que fosse ficção apenas porque é lastimável lembrar que ele aborda assuntos reais, que fazem parte do nosso cotidiano. Como o autor nos lembra de modo direto: “Sim, há milhões e milhões de brasileiros ainda escravizados em nossas milhares de zonas coloniais”.
A obra começa com impacto, de modo visceral, contando a história de Maria mulher preta, diarista e mãe de seis filhos, residente na periferia de São Paulo. Ela está recebendo a visita de um psicólogo e uma assistente social que trabalham no Núcleo de Proteção Jurídico e Social e Apoio Psicológico, conhecido por NPJ. Serviço esse incapaz de dar conta da demanda, pois deveria acompanhar 120 famílias, mas cuidava de quase 350, com outras 300 na fila. Maria mora numa casinha precária, com uma sala, cozinha e dois quartos, um deles minúsculo. Morava com sua mãe idosa e muito debilitada e 5 filhos, já que o mais velho estava na Fundação Casa. Outro filho havia abandonado a escola e estava ameaçado pelo tráfico local devido ao hábito de praticar furtos nas redondezas, além de ter sido diagnosticado com TDAH; e uma de suas filhas é diagnosticada com TEA. Nenhum deles ainda havia conseguido escolas adequadas para suas particularides. O pai dos três primeiros ficou muito tempo preso, até perecer num roubo a banco. E o pai dos demais agredia ela própria e seus primeiros filhos, precisou ser expulso de casa com o apoio dos homens do tráfico local. Muitas outras complexidades na situação, e infinitas burocracias para que conseguisse apoio, marcam a história de Maria.
Mas Maria está aqui retratada para simbolizar toda sua classe social. Esse livro é um verdadeiro estudo sociológico, e como tal, é perfeitamente bem contextualizado. Após essa imersão numa trajédia terrivelmente frequente do presente, o autor nos leva ao passado, às eras coloniais, na qual as potências européias tratavam humanos como meros ativos, financeiros, e desenha claramente os desdobramentos que mantiveram os oprimidos em seus lugares, mesmo após o fim das colônias no sentido literal. Essas colônias se metamorfoseram, mas mantiveram a estrutura social aristocrática, e é por isso que existem tantos milhões pessoas em condições tão precárias quanto Maria.
Esse livro é ideal para quem deseja não apenas solidariezar-se com os problemas sociais que ainda vigoram, mas entender suas origens e os mecanismos que perpetuam a opressão. Certamene enriquecerá a luta, até porque o autor não apenas tece críticas (inclusive ao Bolsonaro, fato que adorei) e destrincha o mecanismo do problema. Ele também oferece sugestões muito bem embasadas, apoiadas nas iniciativas que demonstram potencial de reverter o quadro. Leia e reflita no que pode colaborar para que essas propostas ganhem vida!
RITMO:
É um livro informativo, mas apesar disso, há preocupação em transmitir informações de um modo interessante, como evidencia o drama real logo no início. Também há inúmeras citações, trazendo mais vozes para o texto, conferindo dinamismo, após se acostumar com esse tipo de leitura. Além de agregar mais informações e referências para o leitor.
DESENVOLVIMENTO DOS PERSONAGENS:
Apesar de não ser o foco, a introdução é chocante, e os desafios de Maria e seus filhos é arrebatador. Deixa-nos sem chão, nos perguntando como é que aquela família ainda consegue prosseguir. Sua própria existência parece ser tanto um milagre quanto uma maldição para eles próprios, contudo, é impossível não torcer para que consigam sublimar seus problemas, que pelo menos uma daquelas criança consiga um futuro digno. E que cumprir o duro roteiro dos não privilegiados: consiga um mínimo de sucesso e possa vir ao resgate de sua mãe tão batalhadora, que fugiu do nordeste para se livrar de um pai agressivo e abusador, que vive com fome para dar de comer aos filhos e diariamente teme que sofram alguma tragédia.
Contudo, o real personagem é a classe social relagada à precariedade, abaixo da linha da pobreza em grande parte. Sua história é contada desde que foram arrancadas de suas terras ancestrais para servirem aos colonizadores brancos até os dias atuais.
AMBIENTAÇÃO:
Esse estudo se baseia nos dados brasileiros. O cenário inicial é São Paulo, mas a realidade descrita não se limita geograficamente, pois fala de toda uma camada social.
Contudo, apesar do foco do trabalho ser nossa realidade, é perfeitamente possível extrapolar o alcance para todos os miseráveis desse mundo, que compartilham problemas demasiadamente semelhantes.
CONFLITOS:
Temos a luta pela sobrevivência dos vulneráveis, vividamente retratada nos casos reais citados, mas o verdadeiro conflito é a necessária luta anticolonialista. O autor deixa claro que esse grande inimigo segue fazendo vítimas há séculos, quase sempre impunemente, e aparelha o estado com o único intuito de manter seus privilégios ilegítimos.
O leitor também enfrentará um certo conflito interno, pois é impossível ler todos esses relatos e conhecer mais a fundo o contexto atual e histórico sem sentir o sangue ferver e experimentar algum desejo de enfrentar esse sistema monstruoso.
CITAÇÕES FAVORITAS:
“Trata-se de casos em que nos deparamos com a insuficiência do Sistema de Garantias de Direitos, com famílias que possuem deficiências em diversos dos pilares responsáveis pela sustentação e manutenção de um possível - e distante - bem-estar cotidiano. Mudaram-se os nomes; a configuração familiar; os problemas enfrentados; a história apreentada; contudo o denominador comum da desigualdade e do constante risco social persistia. Sim: há muitas e muitas famílias que nunca tiveram outra experiência na vida, que não a da extrema vulnerabilidade..”
“Sim, há milhões e milhões de brasileiros ainda escravizados em nossas milhares de zonas coloniais”.