Toni 18/04/2024
Leituras de 2023
Nossa Senhora do Barraco [2009]
Gabriela Cabezón Cámara (Argentina, 1968-)
Moinhos, 2023, 160 p.
Trad. Silvia Massimini Felix
O colofão é aquele espaço na última página de um livro onde geralmente são indicados o tipo de papel e a fonte usados na impressão, assim como a gráfica, a cidade e o ano em que determinada obra foi impressa. Para além desses dados, não raro editoras acrescentam efemérides, notas divertidas ou convidam os próprios autores para contribuírem. A Moinhos (quem não conferiu ainda que trate de conferir) sempre deu um show no uso político deste paratexto, e o que lemos na última página de Nossa Senhora do Barraco é o seguinte: “No Brasil, há 10 anos, Amarildo, ajudante de pedreiro, era torturado até a morte por policiais no Morro da Rocinha. Seis PMs que foram condenados continuam trabalhando na corporação militar. Infelizmente, até hoje, sua ossada não foi encontrada e sua família não conseguiu realizar um sepultamento em seu nome.”
Este livro de Cabezón Cámara, autora do brilhante “As aventuras da China Iron”, é um romance de favela, de travestis, de marginalização e brutalidade. A lembrança de Amarildo é, portanto, um lembrete inescapável da força que memória e fabulação podem ter ao elaborar com dignidade vidas invisibilizadas ou resumidas à forma trágica como foram encerradas. Dividida entre duas vozes complementares, Qüity, uma jornalista que se apaixona pela travesti Cléo, e Cléopatra, a travesti que começa a ouvir as vozes da Virgem Maria e operar milagres, a narrativa explora as dinâmicas sociais, afetivas e de resistência de toda uma comunidade em vias de ser desapropriada para benefício de políticos, policiais e empresários do ramo imobiliário.
Mas o romance vai muito além desse arco narrativo, explorando os efeitos de certas drogas na composição de um discurso frenético — inconsistente e/ou fabuloso — e nas imagens de violência, desejo, amor e ódio que permeiam nossa humanidade adoecida. Uma leitura pesada, é verdade, mas escrita com as doses certas de deboche e revolta contra a mesquinhez e o cinismo daqueles que controlam o mundo e fazem fortuna com a criação e a manutenção das periferias.