spoiler visualizarcammealves 05/09/2024
Aquele que veio para me fazer refletir sobre a humanidade
Um livro que vivenciei em camadas. Tanto a história de Snow, de quem ele foi e de como se tornou aquele da trilogia. Como a história de Lucy Gray, que a trilogia citou apenas como um vislumbre.
Na camada do jogos em si, gostei que algumas dúvidas minhas sobre os jogos foram respondidas. Para mim sempre pareceu meio bizarro os distritos terem vivenciado 74 anos de jogos em que crianças e adolescentes eram postos para lutar como animais, e ninguém nunca tivesse questionado. O fato de que sabiam que havia existido uma vitoriosa no 12, mas ninguém sabia dizer ao certo quem era. O contexto das músicas que a Katniss canta, porque apesar de na trilogia contar por alto o significado, a narrativa possibilitou visualizar a realidade que as originou, dando a percepção que faltava.
Na camada do sentido dos jogos, a narrativa desenvolve como os jogos foram se estruturando e ganhando relevância, expandindo seu sentido do campo do castigo para o do entretenimento.
Me fez pensar bastante sobre a natureza humana e sobre como somos atraídos pelo caos. A história trabalha muito com essa perspectiva de que os seres humanos são selvagens e que os jogos são totalmente justificáveis porque os fazia lembrar disso: que o ser humano, sem lei, é um animal e vai agir como tal para sobreviver.
Tanto que o livro brinca bastante com os conceitos de sociedade, contrato social e a própria natureza humana. Como que prevendo os eventos que se desenrolam na trilogia.
Na camada do Snow, é uma narrativa que me fez vivenciar uma linha muito tênue entre a empatia e a repulsa. A empatia por perceber que o homem cruel e tirano que domina Panem viveu traumas significativos na guerra, tendo passado fome, frio e medos incontáveis sobre a própria sobrevivência. E repulsa porque, da para sentir que a narrativa, ao mesmo tempo que humaniza Snow em pequenas coisas, dando um apelido afetivo, um aparente interesse amoroso, um senso de cuidado e proteção familiar, ela nos faz lembrar que suas atitudes são puramente egoístas, narcisistas.
Todas as suas atitudes aparentemente boas vão se desfazendo no decorrer na narrativa, revelando a todo momento quem ele é.
Sua insensibilidade e crueldade tão palpáveis na trilogia, se mostram em faíscas nesse livro. Faíscas que vão ganhando força diante de cada obstáculo que ele encontra pelo caminho e servem apenas de combustível que alimenta sua ambição, validando suas atitudes.
Traições. Mentiras. Trapaças. Assassinatos. Seu asco pelos distritos. Sua arrogância. Cada decisão que ele toma é baseada na ambição de se tornar o homem mais importante de Panem. E ele não esconde isso.
Aquele homem sem escrúpulos que conhecemos da trilogia, aprende bem rápido que matar é, ao mesmo, o caminho da Capital e o caminho para ser temido por ela.
A narrativa vai enrolando, a cada assassinato, a perspectiva de que matar se torna totalmente justificável e simples para ele, que tenta matar aquele que acha que ama, culminando no seu aceite sem remorsos de ser adotado pelos Plinth.
Na camada de Lucy Gray, me encantei, me desesperei e percebi com como é uma personagem que se parece com a Katniss. A forma de agir, de vivenciar o seu mundo. A forma com que se importa com as pessoas que ama e demonstra bondade sem esforço.
Gosto de brincar com os paralelos que a narrativa deixou aberta à interpretação, como o fato de que Lucy Gray consegue sair do domínio da Capital porque some do distrito, não por coragem, mas por medo de ser morta por alguém que ela confiou, algo que a Katniss sonhou fazer e não teve coragem exatamente por causa daqueles que ela ama e em quem confia.
O fato de que ambas poderiam ter matado o Snow se quisessem, e tiveram a oportunidade de fazê-lo, mas não fizeram. Ou ainda o fato de que Lucy Gray some e cai no esquecimento de Panem, algo que a Katniss chega a desejar por entre os livros, e até conquista certo afastamento depois de muitos anos e de acabarem com os jogos e tudo o que os representa, mas as escolas ainda trariam à memória quem ela era e sua importância para a construção da democracia da qual seus filhos usufruíam.
Acho que esse livro, aliado à trilogia inicial, ainda vai me render muitas reflexões e análises. Sinto que não vou parar de ruminar sobre eles.
Porque me pego refletindo sobre a humanidade e como, apesar de retratar uma realidade distópica e aparentemente impossível de acontecer, a história trabalha com a ideia de que os seres humanos não precisam de muito para agirem de maneira cruel. Em contrapartida, não deixa de lembrar que também podem agir com bondade, se quiserem.
Já estou relendo partes dos outros livros por causa desse.
Ps. Sobre o filme. Deveriam ter feito em duas partes, como o esperança, para que não fosse tão retalhado e perdesse tantas representações essenciais. Dar vida às músicas é o que vale a pena assistir.