Ana Sá 04/11/2022
Não é autoficção, é "autossociobiografia"
[O livro é curto e a resenha é longa, então não sei se algo aqui pode ser considerado SPOILER ou não... Isso vai depender da sensibilidade leitora de cada um!]
Em "O lugar", a mais recente ganhadora do Nobel de Literatura, a francesa Annie Ernaux, apresenta a biografia de seu pai, um homem comum da França do início/meados do século XX. Logo que tive acesso à sinopse deste livro confesso que fui tomada por preconceitos. Após a experiência desgastante que tive com "A morte do pai", de Karl Ove, levei um bom tempo a me render à proposta dos livros da autora. Além disso, a insistente e forçosa associação de sua obra à tal "autoficção" também afastava cada vez mais seus títulos da minha estante. Para minha sorte, esse pé atrás durou até o anúncio do Nobel, quando descobri que ela tinha feito em 70 páginas aquilo que Karl Ove tentou fazer em cerca de 500. O Nobel atribuído a uma escritora que investe em textos curtos e autobiográficos realmente despertou minha curiosidade.
No meu (longínquo) mestrado, eu pesquisei a questão da autoficção antes de ela virar modinha nas páginas culturais. Não pretendo aqui dar uma carteirada acadêmica, muito menos pesar a resenha com teorias desnecessárias, mas é incrível como a crítica cultural (não especializada) se esqueceu (ou nunca soube) que a escrita de si pode significar apenas autobiografia, em nada tendo a ver com ficção. Annie Ernaux não nos vende romances. O modo como seu livro é apresentado ao público leva-nos a estabelecer com seus textos um pacto autobiográfico, e não ficcional. Qualquer discussão sobre "autoficção" aqui é conversa pra leitora dormir!
Dito isso, foi prazeroso acompanhar o modo inteligente como a autora explora e extrapola o gênero da escrita pessoal. As teorias que tratam da escrita de si alertam desde sempre que a escrita pessoal, embora não seja ficcional, tampouco é sinônimo de verdade ou literalidade. O "eu narrador" dificilmente equivale ao "eu narrado", há sempre uma distância significativa entre eles. Ao falarmos de nós mesmos nós também recorremos à invenção, nós selecionamos, incluímos e excluímos fatos, e isso já basta para que a tal "verdade" se torne inalcançável. Nossa visão sobre quem somos é alterada com o tempo, com o contexto. E Ernaux se mostra ciente disso, e disposta a propor um novo do "eu", quando afirma em um dado momento do livro: "A cada vez, me esforço para escapar da armadilha do ponto de vista individual".
A meu ver, parte da maestria de "O lugar" está resumida nessa citação. Se há entre os clássicos quem tenha (brilhantemente) articulado autobiografia à filosofia (como Santo Agostinho), na literatura contemporânea Ernaux deve se consolidar como um dos grandes nomes que propõem um casamento entre autobiografia e sociologia. Seu breve livro amarra lindamente a biografia de sua família a elementos sociais e históricos da França e da Europa. Entre o íntimo e o público, ela fala de si para falar de tantos outros, driblando alguns limitadores de escrita que poderiam surgir desse descompasso entre "eu narrador" e "eu narrado". E vou além: se um dos critérios para se identificar um bom escritor é sua capacidade de trazer elementos universais à sua obra, destaco as reflexões que fiz sobre mim e sobre o Brasil durante a leitura, a despeito de a narrativa centrar-se no contexto francês. Apesar do título ser "o lugar", eu diria que o eixo dos relatos é, na verdade, o "entrelugar" que Ernaux passa a ocupar ao ascender socialmente e "intelectualmente" após ingressar na universidade. Graças às bolsas que permitiram sua permanência no ensino superior, ela se vê entre um círculo familiar que entende "trabalho" como sinônimo de trabalho braçal e um círculo social/universitário no qual o exercício intelectual é extremamente valorizado.
"Quando [o pai] voltou para casa, não quis mais trabalhar com a cultura. Era assim que ele chamava o trabalho na terra. O outro sentido de cultura, o sentido espiritual, ele considerava inútil".
Foi inevitável me lembrar dos muitos brasileiros que, graças à universalização do ensino superior promovida pelos governos do PT, se tornaram os primeiros de suas famílias a obterem um diploma. E é interessantíssimo como Ernaux explora bem o aspecto subjetivo e identitário desse tipo de mudança, um ponto que costuma ser menos discutido quando falamos dos efeitos dessas políticas. Ernaux não recorre a uma hierarquia cultural que contrapõe o popular ao erudito, mas reflete sobre as (im/)possibilidades de interseção entre os lugares sociais e afetivos daquilo que fomos e daquilo que nos tornamos quando o nosso capital cultural se transforma abruptamente.
Para o título da resenha, eu emprestei o termo "autossociobiografia" de umas das sinopses comerciais de "O lugar", pois, a meu ver, não há definição melhor. Um livro sobre Ernaux, sobre seu pai, mas também sobre tanta gente mais. Um pai, querido em muitos momentos, que transitou da condição de trabalhador rural para a de operário e, então, para a de comerciante, surge portanto como o ponto de partida para uma reflexão sobre diferentes classes sociais e diferentes momentos históricos do século XX. Tudo isso com o mérito de não se apagar o papel das relações afetivas ao longo desses processos.
Obs.: eu li, em seguida, "O acontecimento", no qual a autora narra o aborto clandestino que realizou quando jovem. Apesar da importância e da força desse relato, achei que nele Ernaux não alcança o mesmo brilhantismo de escrita que vi em "O lugar". Mas é uma confissão tão brutal que, para ser sincera, eu nem sei se e como ela poderia ser melhor trabalhada esteticamente, né...