Delirium Nerd 30/08/2018
Os fantasmas que assombram a chegada da vida adulta
O quadrinho Ghost World, de Daniel Clowes, aborda a adolescência de duas garotas de forma fiel ao que diversas meninas passam ao longo de suas vidas. Enid Coleslaw e Rebecca Doppelmeyer, as protagonistas, materializam o que todas as mulheres, durante a adolescência ou vida adulta, necessitam dizer para o mundo; através de falas e comportamentos reais, Clowes sintetiza o que a vida é na verdade: um emaranhado de aflições e incertezas que ocorrem antes, durante e após os fechamentos de ciclos.
Enid e Rebecca são melhores amigas e moradoras de uma cidade pequena da Califórnia, Estados Unidos. A série de quadrinhos começa pouco tempo após a formatura das garotas no colegial, e acompanha as decisões vindas como consequência do final da adolescência e que ambas precisam tomar por vontade própria, mas com um fundo de pressão derivada da sociedade. Mudar de cidade para recomeçar a vida do zero ou iniciar uma faculdade? Os pensamentos acumulam-se e parecem possuir vontade própria, assombrando-as constantemente. Mas, ao mesmo tempo em que as dúvidas surgem, Enid e Rebecca levam a vida com leveza e de forma autêntica.
Um dos focos do quadrinho é o relacionamento de irmandade entre as duas; as garotas conseguem viver separadamente, mas juntas são muito mais fortes, um ponto extremamente positivo, uma vez que outras mídias que abordam o mesmo tema preocupam-se, na maioria das vezes, em estabelecer rivalidades entre meninas (as poucas discussões que Enid e Rebecca têm ao longo do quadrinho culminam no fortalecimento da amizade entre elas), além do foco constante em relacionamentos amorosos, como se a vida de adolescentes, principalmente garotas, devesse necessariamente resumir-se nisto.
As personagens possuem personalidades multifacetadas e alterações de humor, fugindo ao padrão unilateral que muitos autores buscam ao delimitarem características femininas. Enid é sarcástica e bem-humorada, mas também possui seus momentos de introspecção e reflexões profundas, assim como Rebecca. Ambas, principalmente Enid, procuram autoafirmação em mudanças de comportamento e até mesmo de visual, evidenciando que a representatividade, além de exterior, vem da própria essência.
Os diálogos acerca de sexualidade são sinceros e abertos: não há o que temer, se ambas são livres para satisfazerem seus desejos (o que leva a leitora a se identificar também com a segurança e autonomia que permeia a vida das duas). Clowes, na introdução à belíssima edição comemorativa de 20 anos, diz que, além de um reflexo dele mesmo, as meninas de Ghost World foram criadas para transparecerem o que adolescentes são na vida real, sem máscaras e filtros morais.
O quadrinho aclamado pela crítica ganhou em 2001 uma versão cinematográfica, dirigida por Terry Zwigoff e estrelada por Thora Birch no papel de Enid e Scarlett Johansson como Rebecca. A obra adapta muito bem os quadrinhos, incluindo diálogos marcantes protagonizados pelas meninas. A caracterização de Enid e Rebecca pelas atrizes dá vida a um sentimento profundo de pertencimento ao mundo de Ghost World: a ligação com a vida das duas recém-chegadas ao mundo adulto é forte e imediata. Os conflitos internos também são explanados – as indecisões e vontades das protagonistas saltam da tela, envolvem a espectadora em um humor particular e comovem.
A ambientação da HQ, definida pelos mesmos pontos de encontro e poucos lugares de entretenimento de sempre, faz com que toda mulher que viveu ou vive em uma cidade pequena se compadeça da história de Enid e Rebecca. Um local com poucos amigos e pouca diversão torna-se, aos poucos, menos convidativo e um alerta constante para as tantas rotas de fuga que o mundo deve possuir. A coloração constantemente azul clara que contrasta com os traços marcantes de Clowes evidencia a monotonia dos dias das duas jovens, vivendo em um mundo pálido como um fantasma, hostil e deprimente por excelência.
A estrutura da narrativa possui começo, meio e fim em todas as histórias que formam o compilado de Ghost World. Por mais que todas elas, apreciadas em ordem cronológica, apresentem a trama oficial, também podem ser lidas e facilmente compreendidas de forma independente. Em alguns momentos há a quebra de expectativa quando as próprias protagonistas citam Daniel Clowes e debatem sobre ele, ou quando há a quebra da quarta parede para conversarem com o narrador, tornando o fluxo da história muito mais dinâmico; algumas personagens secundárias não são muito marcantes ou recorrentes na história, e acabam fazendo o papel daquelas pessoas conhecidas que, ao longo da vida, por mais que não interajam tanto conosco, possuem alguma função em nossos dias (e, que se sumirem por algum motivo, causam incômodo).
A personagem Norman, um senhor que senta todos os dias em um ponto de ônibus esperando o transporte que nunca vem, sintetiza a busca por fuga que as pessoas da cidade tanto almejam. Todos, sem exceção, são pessoas deslocadas: no trabalho, em relacionamentos amorosos ou dentro da própria família – há uma constante inquietação com o simples fato de “ser” naquela cidade.
Ghost World é uma excelente e cativante crônica sobre a vida real, inseguranças que nos rondam e sobre ser, literalmente, protagonista de sua própria história. É a vida em seu mais puro equilíbrio entre o caos e o encanto.
site: http://deliriumnerd.com/2018/03/20/ghost-world-daniel-clowes-resenha/