Paulo 21/03/2022
“A beleza dela não passa de uma montagem. É como se fosse a manifestação dos nossos desejos”
Helter Skelter conta a história de Lilica, que após várias plásticas extensivas e manutenção vigorosa, se tornou a beleza em pessoa, se tornando uma modelo, atriz e cantora de enorme sucesso. No entanto, logo seu corpo começa a reagir mal às tantas cirurgias e ela se vê em decadência física. Agora ela é obrigada a encarar as consequências do que fez e o inevitável fim. Enquanto isso, um detetive que investiga uma série de suicídios misteriosos e roubo de órgãos acredita que Liliko e sua beleza artificial podem ser a chave para desenterrar uma indústria clandestina de tratamentos médicas ilegais e salvar vidas.
Assim, por um lado, acompanhamos o declínio físico de Lilico, incapaz de suportar o peso da passagem dos anos e os efeitos colaterais de tantas cirurgias, e como isso começa a afetar tanto o seu trabalho, a sua relação com seus empregados e pessoas próximas, quanto a sua própria sanidade mental. À medida que a história caminha, seu estado psicológico só se degenera, construindo um enredo angustiante e chocante. Por outro, acompanhamos as investigações do detetive Asada, que o levam a uma clínica estética por onde já passaram diversas celebridades e figuras proeminentes da sociedade japonesa, enquanto vemos questionados valores e padrões do mundo da beleza e da moda, e das super celebridades.
O desenvolvimento principal da história é centrado em Lilico, que não é uma personagem que se admire. Apesar de nos compadecermos com as cobranças profissionais e estéticas sofridas por ela, em vários momentos do mangá é difícil sentir muita simpatia pela modelo que está constantemente aproveitando-se da sua beleza e posição de poder para manipular e humilhar quem a desagrade. Ainda assim, Lilico não é a vilã da história. Em algumas partes você a entende, em algumas você se indigna, você torce, você odeia, se identifica, reconhece. Aliás, todos os personagens, incluindo os coadjuvantes, são imperfeitos e difíceis de sentir empatia.
E assim como as demais obras da mangaká, Helter Skelter também traz críticas à sociedade japonesa, sendo muito mais que um mangá sobre a ascensão e queda da beleza e os sacrifícios que as celebridades fazem para aparentarem perfeição diante da mídia. Helter Skelter trata da busca incessante pela “beleza ideal” e pela juventude eterna. É uma crítica a cultura da vaidade, a natureza inconstante da fama, as celebridades e o papel que desempenham na vida e mentalidade dos jovens, e próprio público que consome avidamente esses modelos e se regozija diante das tragédias daqueles que um dia foram seus ídolos. É uma obra que fala sobre a cultura da beleza que sabemos que existe e que vivemos no dia a dia, mas que não queremos acreditar que existe pois, de certa forma, seguimos seus padrões mas não nos aceitamos como parte desse padrão.
Quanto a arte, ela divide opiniões. Para muitos, são desenhos feios e mal feitos. Porém, para outros, a autora buscou através de seus traços fazer um paralelo com o que quer contar em sua história, de forma a demonstrar a decadência da personagem de ídolo pop a um ser horrível no final da história. Agora, independente dessas interpretações, é verdade que quando a autora terminou de produzir a obra, ela sofreu um acidente, que a impossibilitou de fazer a pós produção do mangá, passando assim um aspecto de inacabado em certos momentos, mas que deixa a obra com um tom cru.
No fim, Helter Skelter é um drama psicológico excelente, com um ritmo crescente de perturbação e desamparo, com uma história fascinante. É extremamente envolvente, mesmo com personagens que são difíceis de simpatizar e com cenas que deixam o leitor bem desconfortável em vários momentos. Através de sua obra, Kyoko nos faz refletir sobre diversos aspectos da cultura da beleza. Impressionante como a obra não envelheceu mesmo após mais de 25 anos da data de seu lançamento, se aplicando melhor do que nunca a nossa realidade. Sua narrativa focada no psicológico decadente e sua arte fora do padrão podem incomodar parte do público, mas para quem está atrás de um mangá mais adulto, com uma narrativa que aborde mais do lado obscuro da natureza humana, é uma leitura obrigatória.