Jeff.Rodrigues 11/11/2019Resenha publicada no Leitor CompulsivoÁvido leitor de materiais sobre história, sempre me incomodou a forma como a corte portuguesa foi moldada no imaginário brasileiro, principalmente em obras de alto alcance popular como filmes e minisséries. Desrespeitosa com parte importante da nossa formação como nação, a construção de figuras como o príncipe glutão ou a princesa ávida por sexo, notadamente D. João VI e Carlota Joaquina, mostram o quanto somos imaturos com nosso passado. Visões contrárias, seja política ou idelogicamente falando, fazem parte do processo, contudo parece ser mais fácil partir para a ridicularização, para a crítica simples. A consequência acaba sendo a formação de pessoas (cidadãos) com total falta de noção sobre períodos importantes para nós enquanto país.
É nesse contexto que se insere a curiosa figura de D. Maria I, resumida de forma bem direta como “a louca”. Nunca tinha parado seriamente para pensar nela como uma governante. Sendo bem sincero, a figura dela sempre foi de alguém marginal, justamente pela definição de “louca” que parece servir para resumir toda a sua vida. Injusta visão, talvez pela escassez de material disponível sobre seu período à frente do reino. A partir da leitura de D. Maria I – As perdas e as glórias da rainha que entrou para a história como “a louca”, a percepção muda de figura e minha galeria pessoal de majestades ganhou nova personagem.
Na prosa deliciosa de Mary Del Priori, a biografia de D. Maria I é uma grata viagem pelos tempestuosos mares navegados por uma mulher fruto e vítima de seu tempo. Criada em um Portugal, e numa corte, fervorosamente católicos e sob as influências de um pensamento religioso em que Deus era um juiz a anotar pecados e distribuir punições, Maria, como inúmeras outras mulheres, viveu uma fé professada com medo. Uma primeira característica a moldar a futura governante: não se tomam decisões sem pesar o lado da Igreja, dos padres, de Deus.
Por outro lado, a figura da mulher como suprema governante de um reino não era tão bem vista pelos nobres portugueses. Assim, a Maria religiosa tinha pela frente o obstáculo do machismo. Mesmo com figuras femininas fortes no comando de algumas nações, Portugal não se sentia à vontade em ter uma mulher decidindo seu futuro.
“Não era louca, mas, por força da Igreja da época, sentia-se louca. Considerava-se pecadora e culpada. E, como tantas místicas, dava assim sentido à sua dor”.
Esse é o contexto em que D. Maria I vai reinar. E para além dele, virão se somar uma série de tragédias familiares que pouco a pouco vão lhe tirar o prazer de viver. Loucura? Não. Depressão? Certamente. Vítima do atraso da medicina em não conhecer as “doenças da alma”, Maria vai sofrer baques, perdas e desgostos que vão minar sua alegria com o mundo e fazê-la se trancar cada vez mais em um mundinho particular. Mais fácil resumir tudo à loucura…
Interessante extrair da leitura de D. Maria I a descoberta de uma governante amada pelos portugueses e que no tempo em que reinou, feliz, soube olhar para seus súditos, se aproximar deles e receber carinho e adoração. Descobrimos com esse livro não uma rainha, mas uma mulher que governou para os seus, dentro de sua crença e com seus erros e acertos. Uma mulher forte derrotada pela enfermidade de tantas perdas. Uma mulher que injustamente resumimos como uma louca, mas que tem muito a nos ensinar sobre os desafios enfrentados e/ou superados pelas mulheres de séculos passados. Mais uma daquelas leituras fundamentais para corrigir nossa visão distorcida sobre a corte portuguesa e para nos mostrar a força de personagens que são um pouquinho também brasileiros e que influenciaram nos rumos de nosso país.
“Conhecia apenas ‘a louca’. Hoje conheço uma mulher”.
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