jota 05/10/2020MUITO BOM (mais um pouco da rica literatura do leste europeu, Hungria desta vez)
Muita gente por aqui já leu autores como Ferenc Molnar ou Sandor Marai, criadores de, respectivamente, Os Meninos da Rua Paulo e As Brasas, grandes sucessos da literatura húngara. Mas certamente poucos leitores brasileiros haviam tido contato com a escrita de István Örkény (1912-1979) antes que a Editora 34 lançasse pela primeira vez duas de suas novelas em 1993, e depois uma nova edição na Coleção Leste em 2016, composta por quatro volumes independentes. As novelas são A Exposição das Rosas (1977) e A Família Tóth (1967), ambas narrativas literárias satíricas, com uma boa dosagem de humor negro e também com certo nonsense.
A tradução foi feita diretamente do original, por Aleksandar Jovanovic, a apresentação é de Moacyr Scliar e o prefácio de Nelson Ascher, um trio da pesada, como se vê. Porque Örkény merecia estar em boa companhia em terras brasileiras. A tradução de Jovanovic é correta, suponho, Scliar e Ascher situam muito bem o autor dentro de seu país e de seu tempo, quer dizer, tempo da ocupação soviética, o que, claro, influenciou sua literatura irônica e satírica, como se pode perceber aqui, especialmente no caso da segunda novela, que ridiculariza o militarismo. A Exposição das Rosas trata da morte o tempo todo enquanto que A Família Tóth termina em morte, nem um pouco gloriosa ou requintada.
Uma equipe da televisão estatal húngara trabalha num projeto de documentário que pretende registrar a morte em suas várias formas. Os realizadores já têm um título para ele, E Assim Morremos Nós. Os administradores da emissora, porém, não aceitam esse título alegando que ele poderia afugentar os telespectadores. Sugerem então que usem outro, A Exposição das Rosas; uma das moribundas a ser entrevistada e acompanhada até seus momentos derradeiros trabalha no comércio de flores, rosas especialmente, daí a ligação entre a exposição anual dessa flor e o conteúdo da produção televisiva. Os realizadores concordam e iniciam seu trabalho: começam a documentar os últimos momentos de alguns moribundos e daí surgem histórias curiosas e situações e personagens inusitados: os próprios doentes e as demais pessoas que os cercam.
Acompanhe no trecho abaixo o diálogo entre dois personagens centrais, para sentir um pouco como o autor trata o assunto:
“Eu também gostaria de produzir um documentário” disse Iron, certa vez, assim, em devaneio.
“A respeito do quê?
“A respeito das formas que a nossa morte assume.”
“Com atores ou personagens reais?”
“Somente teria sentido com personagens reais.”
“Desde que você encontre gente disposta a morrer diante dos olhares de milhões de espectadores.”
“E você não se disporia?”
“Pretendo viver por longo tempo” sorriu J. Nagy.
“Sim, mas você já teve um infarto.”
“É verdade”, concordou J. Nagy, com a generosidade dos ébrios. “O meu próximo infarto é seu.”
“Isso é muito gentil de sua parte.”
O tema da morte, desagradável para grande parte das pessoas, é tratado por Örkény de forma bem humorada, humor húngaro, é claro: não vão faltar toques grotescos e tragicômicos durante o desenvolvimento da trama. Apesar de A Exposição das Rosas ter se transformado no texto mais conhecido do húngaro, penso que a segunda novela do volume é mais engraçada e com maiores chances de provocar interesse pelo autor, também pela rica literatura de seu país. Porque em A Família Tóth temos um militar, personagem curiosíssimo que, nesses tempos absurdos por que passa nosso país, parece mostrar que muitas pessoas não se dão conta da realidade grotesca em que vivem, no nosso caso especialmente depois que a pandemia do coronavírus se instalou aqui. Há mais coisas em comum entre o major da novela e o ex capitão que nos massacra diariamente com as sandices que diz ou pratica do que pode sugerir nossa imaginação.
Vamos ao resumo da quartelada: a família Tóth hospeda em sua casa, com certo sacrifício - mas foi um pedido do amado filho lutando no front, fazer o quê? -, um militar estressado, que ali está, entre belas montanhas e a vida simples e saudável de um vilarejo, para repousar, curar-se do estresse causado pela guerra. Só que com seus preceitos, costumes e manias o alucinado major transforma e transtorna a vida de pai, mãe e filha de tal modo que todos parecem estar vivendo num verdadeiro quartel do barulho. E não mais no agradável lar que habitavam antes, tantas são as regras que a família tem de observar agora, além de que também têm de mudar completamente seus hábitos para satisfazê-lo. Por exemplo, o major por conta de suas neuras, só dorme de dia, à noite fica vigilante por conta dos perigos, dos inimigos que a escuridão pode trazer. Em conseqüência, a família é obrigada a trabalhar à noite e a repousar durante o dia, estando a ponto de também enlouquecer, feito o milico.
Assim, mergulhamos na tragicomédia: “o militarismo e os frágeis valores da classe média são tratados com mordaz ironia” por Örkény, como bem observa Moacyr Scliar. Sim, porque a família faz tudo pelo major, sujeita-se às suas neuroses e disciplina férrea pensando que com isso estará beneficiando o filho, que poderá receber algumas regalias quando o major voltar à ativa, conforme ele mesmo prometera aos Tóth. Não sabiam, porém, nem mesmo ele, que o rapaz havia morrido em combate há pouco: o carteiro local (sujeito meio amalucado) sumira com o telegrama do exército comunicando a morte do soldado. Mas algo acontece... É somente nas páginas finais que vem a desforra, o alívio, não apenas para os Tóth, também para o leitor, irritado com a figura mandona e grotesca do major. Mas sem o qual não haveria essa história engraçada, no entanto...
Lido entre 28/09 e 03/10/2020.