Matheus 29/08/2022
O beijo é lindo!
Para Nelson Rodrigues "a ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz. O personagem é vil para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós."
Em "O beijo no asfalto", o célebre dramaturgo nos apresenta a um recorte fictício de fato atroz da vida de um homem comum engolido por monstros travestidos de bons cidadãos.
Na obra, Aprígio é testemunha de um atropelamento acidental e, ao ir em auxílio do homem ferido, se vê diante de um inesperado pedido. O moribundo, à beira da morte, pede a Aprígio um beijo.
A cena de um beijo entre dois homens numa via movimentada do Rio de Janeiro é suficiente para acender um barril de pólvora. Liderados por um jornalista desonesto e um policial corrupto, vários boatos sobre a curiosa cena começam a incendiar a imprensa carioca e a transformar a vida do pobre Aprígio num pesadelo.
Mentiras e fatos enganosos começam a ser espalhados por toda a cidade. O singelo "beijo no asfalto" aos poucos se transforma num crime passional cujo principal suspeito é o jovem Aprígio.
É a partir desse acúmulo de mentiras e distorções dos fatos que a obra te apresenta figuras desprezíveis como o jornalista Amado e o delegado Cunha, além de vários outros personagens que parecem incapazes de pensar com a própria cabeça ou agirem sem interesses escusos.
Numa narrativa ágil, costurada por diálogos afiados e fluidos, Nelson Rodrigues escancara a hipocrisia comum ao cidadão médio e a miopia daqueles que parecem incapazes de defender seus princípios e convicções sem serem manipulados pelo efeito manada ou a circulação de notícias falsas.
Aqui, um beijo se torna um suspiro de alívio em meio a uma coleção horrores. O ato genuíno de solidariedade e afeto de um homem é sentenciado pelo tribunal dos tolos a uma punição severa, a qual embora inflinja sofrimento a seu principal alvo, não o faz se arrepender de sua escolha.
Como disse Aprígio: "Lindo beijar quem está morrendo. Eu não me arrependo, eu não me arrependo!".
Com seu tom ácido e satírico, "o beijo no asfalto" demonstra que numa sociedade opressora um ato de verdadeiro altruísmo ou amor pode se tornar revolucionário.