Henrique Fendrich 22/02/2011
George Orwell e alguns métodos de apuração
A muito custo, George Orwell conseguiu publicar a sua obra autobiográfica “Na Pior em Paris em Londres” – e, a despeito de seus esforços, o livro esteve longe do sucesso alcançado com “1984” e “A Revolução dos Bichos”. Na época dos fatos narrados, Orwell havia deixado para trás profissões seguras e bons salários para poder se arriscar como escritor, poeta e jornalista – sem muito sucesso. Revoltando-se contra o imperialismo britânico, o escritor já havia feito, algum tempo antes, algumas peregrinações na periferia de Londres, atraído por crenças socialistas. Ao se mudar para Paris, e acabando o seu dinheiro, pôde sentir na pele as dificuldades de uma vida em extrema penúria. Foi sobre essa vida que Orwell escreveu o livro, anos mais tarde classificado como “jornalismo gonzo” e publicado pela Companhia das Letras em sua coleção de “Jornalismo Literário”.
Na faculdade de jornalismo, tive que verificar quais foram os seus métodos de apuração e pesquisa – considera-se, portanto, que a obra é jornalística a ponto de contar com tentativas de representações da realidade. Apesar de “Na Pior em Paris e Londres” fugir das noções tradicionais de jornalismo, as ações de Orwell revelam alguns métodos de pesquisa que coincidem com a ação do jornalista convencional. O principal método de apuração de Orwell para a sua obra foi a própria observação dos fatos – embora não se saiba até que ponto eles estejam fielmente representados. Sendo ou não “jornalismo gonzo”, a obra realmente está livre de preocupações excessivas com a objetividade, característica sempre presente no jornalismo tradicional. Isso garante a Orwell uma olhar sobre a realidade que não é necessariamente o mesmo que teria um jornalista que relatasse a mesma história de forma factual. Soma-se a isso o fato de ser um livro autobiográfico e, como tal, tender a revelar apenas o que for da conveniência de seu autor. Apesar da dificuldade em definir a veracidade na sua narrativa, ao longo dela o escritor realmente se valeu de informações colhidas no mundo real.
É a quantidade e a qualidade dos detalhes apresentados por Orwell em boa parte da narrativa que permite sustentar a opinião de que, nesses casos, a sua observação não nasceu de uma imaginação unicamente criadora, mas que efetivamente foi apreendida na vida real. Logo no começo, o escritor descreve com propriedade os moradores da pensão em que estava hospedado, citando o horário de trabalho de cada um e até quais eram os seus salários – informações que pressupõem uma conversa (ou a observação de uma conversa). São métodos comuns a jornalistas. Da mesma forma, a descrição do serviços e dos empregados do Hotel X é tão detalhada que sugere a participação do autor dentro daquele contexto específico, o que, pela observação ou pelo diálogo, lhe garantia as informações. Naturalmente, não é possível definir até que ponto essas informações eram verídicas. O próprio rigor da apuração é diverso daquele pressuposto para o jornalismo, pois, nesse caso, estava sujeito às intencionalidades do escritor e das suas expectativas diante da própria obra – que para ele não era, necessariamente, jornalística, embora fosse vinculada à uma realidade. Uma reportagem tradicional, ao contrário pretende ser imparcial e relatar apenas o que é passível de comprovação.
A maior parte da narrativa, feita em primeira pessoa, tem na observação e na conversa a origem de seus dados. Em alguns casos, os personagens citados são a fonte direta das informações, pois Orwell lhes dá voz para que contem as suas próprias histórias. Mas esses não são os únicos métodos de apuração e pesquisa empregados. Em determinado momento, o escritor cita e descreve gírias e palavrões londrinos, relatando, inclusive, a estrutura morfológica de algumas palavras. Percebe-se que, nesse caso, Orwell realizou pesquisas posteriores ao tempo da narração. Elas foram acrescentadas para melhor embasar as opiniões que procurava defender na história, e assim melhor atender aos seus propósitos com a obra. Estão, portanto, relacionadas à uma tentativa de apreensão da realidade, e não de uma criação literária. O autor não deixa claro, no entanto, de onde tirou as informações.
Situação diversa ocorre quando Orwell trata do número de pedintes em Londres. Nesse caso, o escritor mostra claramente que a informação foi obtida conforme os dados do “Conselho do Condado de Londres”. Ou seja, o escritor citou a fonte provavelmente por acreditar que, dessa forma, teria maior credibilidade, uma vez que não se tratava de fato observado, mas de uma estatística oficial.
As opiniões do autor sobre os melhores lugares para um sem-teto dormir em Londres, com as vantagens e desvantagens de cada um, foram obtidas de acordo com a conversa com pessoas que conheciam esses lugares – uma vez que Orwell seguramente não dormiu em todos eles. Mas nota-se que, por mais que esse relato esteja sujeito às interpretações feitas por suas fontes, a narrativa pretende ser uma descrição fiel daquela realidade.
Sabe-se que Orwell também omitiu algumas informações, e alterou outras conforme lhe convinha. A rua da pensão em que morava, por exemplo, tem um nome notadamente inventado – o escritor, por mais que relatasse acontecimentos reais, não queria identificar os personagens de quem tratava. A mesma situação acontece quando cita o “Hotel X”, que, na verdade, se chamava “Hotel Lotti”. Com isso supõe-se que as “denúncias” de Orwell não objetivavam pessoas e lugares específicos, mas buscavam dar conta de um contexto mais amplo e generalizado na sociedade. No entanto, caso tivesse obrigações jornalísticas convencionais, não se esperaria que um repórter alterasse nomes de lugares sem avisar o leitor dos motivos para tal.
Orwell não escreveu essa obra com um objetivo especificamente literário. Sua intenção não era que a leitura causasse prazer estético, por exemplo. Ao contrário, quis citar fatos de uma história que vivenciou e, a partir disso, atingir uma sociedade supostamente bem acomodada e confortável em sua indiferença. Por isso, se detém nas explicações sobre a vida de um plounger em Paris e de um mendigo em Londres, acreditando que o seu público leitor não tem conhecimento dessas situações. Embora se evidencie que o jornalismo gonzo abre mão de algumas das noções mais básicas do jornalismo, nota-se que, no caso dessa obra, existem interesses convergentes já a partir do tema – notadamente de relevância social. O escritor também não abriu mão de métodos de apuração tradicionais, embora fossem sempre filtrados pela sua subjetividade. Sabe-se, no entanto, que isso também acontece no jornalismo factual, mas que é sempre atenuado pelas máscaras da objetividade e imparcialidade.